São Paulo, domingo, 14 de março de 2004

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NOSTALGIA PRECOCE

Internet e globalização "aceleram" a passagem do tempo e trazem saudade mais cedo a quem tem 20 e poucos anos

Jovens transformam ícones da infância em culto

LULIE MACEDO
DA REVISTA

O tempo passa para todo mundo, mas parece que no caso de Ligia Helena Nunes ele foi rápido demais. Ela gosta de se demorar nas lembranças da infância feliz no Parque Continental, onde "naquela época se brincava na rua".
Num cantinho meio escondido do quarto, os velhos brinquedos fazem companhia aos discos dos artistas preferidos, que ela escuta enquanto escolhe a roupa para a festa nostálgica que freqüenta aos sábados. Tudo muito natural para qualquer saudosista -se Ligia não tivesse só 21 anos.
A estudante de comunicação faz parte de um time de nostálgicos cujos integrantes não chegam à casa dos 30 anos e que, saídos há pouco da adolescência, cultuam o passado recente como se ele tivesse ocorrido há décadas.
Sem a bagagem de recordações de seus avós ou pais, o túnel do tempo dos nostálgicos precoces acaba logo ali, nos anos 80.
De olho no retrovisor, eles correm atrás de festas que tocam Cyndi Lauper e Menudo, colecionam brinquedos, fazem sites e listas de discussão e engordam a audiência de programas de rádio que tocam "flashbacks".
Ligia e seus amigos batem cartão na noite Trash 80's, que toda semana atrai cerca de 600 pessoas ao clube Caravaggio, no centro de São Paulo. "Quando dá 1h, a gente precisa controlar a entrada para não superlotar", diz um dos idealizadores do projeto, o DJ e produtor Tonyy, 40.
No penúltimo sábado, num canto da boate, a universitária se esbaldava em uma penteadeira com três imitações da Barbie Face, uma cabeça de boneca em tamanho natural em que as meninas de sua geração testavam os dotes de maquiadora. Na pista de dança, sob cubos mágicos e mais móbiles da Barbie, o DJ engata uma música da hoje balzaquiana Mara Maravilha após um hit do Balão Mágico -de Simony, Jairzinho e Mike Biggs.
Em segundos, Ligia já está no palco, coordenando a coreografia de "Foi Assim", cantando exatamente como fazia a ex-apresentadora do programa "Show Maravilha", exibido pelo SBT até 1994.
A lembrança das canções e coreografias infantis está fresca na cabeça dos saudosistas.
"Hoje tudo passa tão rápido que tenho a sensação de que a minha infância foi há muito tempo", conta o estagiário de rádio e TV Jairo Rozen, 21, fã da dupla de palhaços Atchim & Espirro, do programa "Brincando na Paulista", da TV Gazeta, em 87.
Embora não seja a única, a música é a ponta mais explícita da saudade precoce. "Eu aprendi a gostar de música nos anos 80, com New Order, The Cure. Não me adaptei à nova onda", explica o publicitário Júlio Popolin, 22. Ele conta que se sentiu órfão quando entrou na adolescência nos anos 90 e deparou-se com a explosão do que chama de "música eletrônica sem letra".
Para ajustar a diferença entre tempo e gosto, o publicitário se juntou à turma do site Autobahn (www.anos80.com.br), que promove festas regadas a hits oitentistas no clube Salamandra, em Pinheiros (zona oeste). Nesses encontros, a sessão nostalgia é levada tão a sério que seu idealizador, o webmaster Marcos Vicente, 31, busca todos os elementos possíveis para transformar a balada num túnel do tempo.
"Já distribuí um lote de Dip'n'Lick (pirulito que vinha dentro de um pacote de açúcar aromatizado, famoso na época) que, por muita sorte, encontrei em uma doceria. Assim como na Trash 80's, o público que freqüenta a Authoban tem de 18 a 40 anos, mas a parcela de pessoas entre 20 e 30 anos representa mais de 50%.
É a mesma faixa etária que engorda os índices de audiência das rádios que tocam "flashbacks". A Energia 97 FM criou, em 2000, o programa "Energia Na Véia", dedicado aos hits dos anos 70, 80 e 90. Dois anos depois, os anos 70 praticamente desapareceram da programação.

O tempo não pára
A impressão de que o tempo está mais veloz é compartilhada por todas as faixas etárias, mas, para os filhos dos anos 80, ela parece ser mais intensa.
"O jovem normalmente tem uma tendência ao "presentismo", a viver "o hoje", mas essa geração saiu da infância na mesma época da popularização da internet e da globalização. A sensação de aceleração provocada por esses fenômenos torna o passado, mesmo o recente, obsoleto", diz Juarez Dayrell, 49, sociólogo da Universidade Federal de Minas Gerais.
No coquetel passadista entram ainda dois ingredientes típicos da juventude -a vontade de contradizer o novo e a negação do establishment-, além do indefectível medo do futuro, agora vitaminado pela pressão do desemprego e da violência. "Aos 21, 22 anos é quando começam a se desenhar na cabeça do jovem as perspectivas para a vida adulta, compondo um pacote de expectativas sobre trabalho, carreira, família. Buscar o passado justamente nessa fase pode sinalizar algum problema com a elaboração dos projetos de futuro", analisa Ana Bahia Bock, professora de psicologia da educação da PUC-SP.
Para o sociólogo Waldenyr Caldas, diretor da ECA e ex-professor de sociologia da juventude da Sorbonne (Paris), buscar o passado é saudável, pois ajuda a entender o presente. Ele acha que o saudosismo precoce é um efeito muito provável da sensação de que o tempo atropelou a todos. "Tenho um delírio sobre o tempo. Acho que as 24 horas de um dia hoje não são as mesmas de cem anos atrás. Talvez a Terra tenha passado a rotar mais rápido", brinca.
Teorias à parte, é divertido tentar imaginar que tamanho terá, daqui a 40 anos, o baú de lembranças desses nostálgicos.



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