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São Paulo, segunda-feira, 14 de abril de 2003

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MOACYR SCLIAR

O sonho dos super-heróis

Crise nas histórias em quadrinhos. A invasão de heróis mascarados nas telas dos cinemas comprova que as vendas das revistas em quadrinhos propriamente ditas andam de mal a pior no maior mercado de super-heróis do mundo. "O mercado é declinante em todo lugar", comenta Sérgio Figueiredo, redator-chefe da Abril Jovem. "O fã de quadrinhos não entende isso, mas tudo na vida passa." Ilustrada, 8.abr.2003

Ao perceber que já não havia mais lugar para eles no imaginário do público, os velhos personagens de histórias em quadrinhos decidiram isolar-se do mundo. De comum acordo, adquiriram um grande terreno na Flórida, onde construíram um lar para idosos, dotado de todo o conforto: o Retiro da Fantasia. Ali vivem a sua tranquila existência, inevitavelmente perturbada pelos achaques da velhice. O Super-Homem, por exemplo, já não pode voar; falta-lhe energia para tal. O Homem-de-Borracha sofre de reumatismo e geme a cada movimento. A Mulher-Maravilha olha-se no espelho e fica consternada: desapareceu para sempre, pensa, aquela maravilha que eu fui. Batman e Robin finalmente assumiram-se como casal, mas brigam sem parar.
São coisas que acontecem na idade avançada, mas que, de qualquer maneira, não chegavam a ser um problema para a comunidade. Um dia, porém, chegou ao Retiro um ancião que queria ali ser admitido. Alegou para isso sua condição de ex-personagem. Ele era, segundo explicou, o Homem-Abelha. Quando pronunciava certa palavra mágica, seu nariz se transformava num imenso ferrão, capaz de liquidar vários inimigos. Essa palavra, infelizmente, ele a tinha esquecido.
O caso foi examinado pela comissão de admissão. Ninguém ali ouvira falar do Homem-Abelha; mas a verdade é que muitos já tinham esquecido os heróis do passado. Decidiram, pois, dar ao recém-chegado o benefício da dúvida e aceitaram-no.
Na semana seguinte, novo candidato: o Homem-Gelatina. Pronunciando certa palavra mágica, ele se transformava numa gelatina de aspecto repugnante, que englobava e sufocava os inimigos da democracia. Como o Homem-Abelha, o Homem-Gelatina esquecera a palavra mágica; mas, como o Homem-Abelha, foi admitido. Três dias depois, apareceu a Mulher-Lâmpada, que, transformada numa potente lâmpada, cegava instantaneamente os inimigos. A ela seguiram-se o Homem-Fumaça, a Mulher-Nuvem, o Homem-Polvo, o Homem-Lâmina, os Irmãos Abutres. Todos foram admitidos, e o resultado é que hoje o Retiro está cheio de gente, no parque, no refeitório, na enfermaria. E nada indica que a demanda vá cessar. Flash Gordon está pensando em ir embora para um outro planeta, Tarzan quer retornar para a selva (só não o faz porque os macacos com quem convivia de há muito já morreram).
Resta-lhes uma esperança. Um dia o presidente Bush haverá de chamá-los para invadir um país qualquer. E aí mostrarão quem realmente é super-herói. Sem tanques, sem mísseis, sem nada, eles vencerão, mostrando ao mundo o seu lendário valor. Sim, isso um dia ainda acontecerá, na realidade ou, pelo menos, nos quadrinhos. Quem viver verá.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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