São Paulo, domingo, 14 de maio de 2006

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VIOLÊNCIA

Pela primeira vez, parentes passaram por acompanhamento psicológico durante negociação com os criminosos

Trauma de seqüestro atinge toda a família

GILMAR PENTEADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Na família de João (nome fictício), 48, apenas uma pessoa foi feita refém, mas ninguém saiu ileso no final do seqüestro. João sofreu um infarto à beira da praia, dez dias depois de sua filha ter sido libertada. O seqüestro durou 87 dias e a família teve de pagar o resgate duas vezes.
Maria (também nome fictício), 42, mãe da família, não consegue dormir hoje mais do que quatro horas por noite, tem crises de choro e de medo. O filho mais novo, de 14 anos, tem dificuldade de concentração na escola. A filha de 19 anos, alvo do seqüestro, apresenta quadros de irritabilidade.
Os sete assaltos sofridos anteriormente pelo casal, inclusive com disparos de armas de fogo, não resultaram em nenhum trauma. As reações de João, a mulher e filhos ao seqüestro, porém, foram bem mais graves e confirmaram o que especialistas já tinham percebido: as seqüelas psicológicas do seqüestro, o chamado transtorno de estresse pós-traumático, podem atingir a família inteira.
Essa confirmação surgiu de um acompanhamento psicológico inédito. Pela primeira vez, o Gorip (Grupo Operativo de Resgate da Integridade Psíquica), que atende vítimas de seqüestro desde 2002 no HC (Hospital das Clínicas) de São Paulo, acompanhou os familiares de um refém nos momentos de espera e de negociação com os seqüestradores.
João e sua família foram atendidos em casa por duas psicólogas. "No início, eu estava em estado de choque. Com as conversas, fui me tranquilizando", disse Maria. O acompanhamento começou no 10º dia de seqüestro. "Eu queria andar, andar, porque achava que poderia encontrar a minha filha."
Maria trazia a filha de carro quando, no portão de casa, dois seqüestradores levaram a jovem. O primeiro contato ocorreu quatro dias depois. O resgate foi pago no começo do ano, mas a jovem não foi solta. Mais de um mês depois, os seqüestradores ligaram pedindo mais dinheiro.
As conversas com a psicóloga ajudaram Maria a manter a calma quando, no segundo pedido de resgate, o criminoso a escolheu como negociadora. Foi ela quem levou o dinheiro ao local indicado pela quadrilha.
Apesar de em menor freqüência, João também conversava com as psicólogas. "Isso me ajudou. A pior fase é a da raiva. Você quer matar os caras. Só que você precisa manter os pés no chão, precisa entender a situação", afirmou.

Trauma maior
Para a psicóloga Miriam Sinione Menezes, especialista em saúde mental, que acompanhou a família pelo Gorip, o trauma de familiares pode até ser maior do que o da vítima. "A vítima sabe o que acontece com ela. Mas a família tem uma visão mais fantasiosa, e sofre por isso. Nossa intenção é trabalhar essa angústia, diminuir esse imaginário se apegando em dados da realidade", afirmou.
Segundo o coordenador do Gorip, o psiquiatra Eduardo Ferreira-Santos, o serviço já atendeu quatro famílias de vítimas de seqüestro -só no caso de João, no entanto, que especialistas acompanharam os momentos de negociação. "Os estudos só se preocupavam com o refém como vítima primária e tratavam os familiares como vítimas secundárias. Só que o trauma dos familiares pode ser igual ou até maior do que o do refém", disse Ferreira-Santos.
A idéia do Gorip é aumentar o atendimento aos familiares das vítimas ainda a partir deste ano. "O trauma abala toda a estrutura familiar", disse a psicóloga Mônica Mauro, que possui mestrado em terapia familiar.

Pânico
Nem mesmo o atendimento psicológico durante o seqüestro evitou o aparecimento de seqüelas na família de João. Além do casal e dos filhos, um sobrinho, que foi o negociador até o pagamento do primeiro resgate, também apresentou sintomas de estresse pós-traumático (irritação, problemas de sono e ansiedade).
De todos, a reação de João foi a mais grave. Ele sofreu um infarto dez dias depois do final do seqüestro. "Eu sou mais calado, somatizo as coisas." Maria também diz que a vida não é a mesma. "Hoje eu vivo com medo de todo mundo. Meu pânico são as pessoas", afirma.


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