São Paulo, segunda-feira, 14 de maio de 2007

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MOACYR SCLIAR

O viúvo da cabra


E então o inesperado: a cabra teve um filhote. Que não era dele. Quanto a isso, não podia haver qualquer dúvida

  A cabra mais conhecida do Sudão morreu meses depois de ter sido "casada" com um homem na capital da parte sul do país, Juba. Os líderes locais ordenaram que um homem surpreendido fazendo sexo com a cabra (batizada de Rose), "casasse" com ela. "A idéia era envergonhá-lo publicamente", disse Tom Rhodes, editor do jornal "Juba Post", primeiro veículo a noticiar o fato.
Acredita-se que Rose tenha morrido após engolir um saco plástico quando procurava comida nas ruas. Depois do casamento, Rose teve um filhote macho -mas "não-humano", disse Rhodes. O "marido", Charles Tombe, disse que estava bêbado na época em que foi flagrado.
A notícia do "casamento", divulgada pela BBC, acabou registrando mais de 20 mil acessos por dia na internet. "A reportagem não mostra o Sudão de maneira negativa, mostra que os sudaneses têm senso de humor", afirmou Tom Rhodes. Ele explica que o sul do Sudão tem uma sociedade conservadora: se um homem é surpreendido dormindo com uma mulher, recebe ordem de se casar com ela para salvar a honra dela e da família.
Em razão dessa tradição, Tombe foi punido depois que o dono da cabra o encontrou com seu animal e reclamou junto aos líderes anciãos. Eles deram ordem para que Tombe pagasse um dote equivalente a US$ 50 na época e a dar um nome para a cabra.
Folha Online

LOGO DEPOIS do funeral, o viúvo da cabra entrou em profunda depressão. O que pode parecer surpreendente, dadas as circunstâncias em que se realizara o casamento, aparentemente o castigo de um transgressor. Na realidade, porém, Charles amava Rose. À imprensa e aos amigos declarou que estava bêbado quando foi flagrado em pleno intercurso com a cabra. Mas estava apenas dizendo o que as pessoas queriam ouvir. O fato é que sua paixão por Rose vinha de longe, desde a época em que ela era uma trêfega cabritinha, correndo e balindo pelas ruas do bairro. "Um dia você será minha", ele pensava. E quando a oportunidade surgiu, numa noite enluarada em que ambos estavam a sós na via pública, não hesitou e foi em frente. Sentiu que era correspondido, e isso só fez aumentar ainda mais o seu ardor.
Não sabia, claro, que estava sendo espiado, e que a denúncia seria levada aos anciãos encarregados de vigiar os padrões morais da comunidade. Obrigaram-no a casar. Fingiu contrariedade, como todos esperavam; até reclamou do dote que teria de pagar. No fundo, porém, estava vibrando. Era seu sonho que agora se realizava e, para todos os efeitos, se legitimava.
E então o inesperado: a cabra teve um filhote. Que não era dele. Quanto a isso, não podia haver qualquer dúvida: não existia a menor semelhança entre ambos, mesmo porque o recém-nascido era um cabritinho. Ciúmes terríveis apossaram-se de Charles. Então, Rose o traía! E, pior, traía-o com um bode! Uma humilhação que não podia suportar. Passou a vigiá-la cuidadosamente, mas não conseguiu descobrir nada. Pelo jeito, o amante caprino era esperto.
Simplesmente, não aparecia. E aí a cabra morreu. Por causa dele, aliás. Como, revoltado, não lhe dava mais comida, ela vagava pelas ruas, mastigando o que encontrava.
Comeu um saco plástico que acabou causando-lhe o óbito. Ele sofreu com a morte da ingrata.
Mas, ao mesmo tempo, continua pensando em vingança. O que fará traindo a memória dela. Arranjará uma nova amante. Não outra cabra, que nessa espécie não mais confia. Mas é só questão de tempo para que ele seduza a ovelha do vizinho.


MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas na Folha de S.Paulo.


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