São Paulo, domingo, 14 de junho de 2009

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ANÁLISE

Escrita não veio de "fábrica"

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Alfabetizar uma pessoa é difícil porque nosso cérebro não foi "projetado" para essa tarefa.
A comparação cabível é com a aquisição da linguagem. Para uma criança aprender um idioma, basta atirá-la numa comunidade onde se fale a língua em questão. Em pouco tempo ela estará proficiente. Não há necessidade de instrução formal. Essa foi uma das razões que levou o linguista Noam Chomsky a postular a hipótese, hoje largamente aceita, de que nossos cérebros já vêm de fábrica com um órgão da linguagem.
Com a escrita é bem diferente. O processo de alfabetização não vem "naturalmente". Ele precisa ser ensinado e exige uma maturidade neurológica que só surge por volta dos cinco ou seis anos de idade.
Mais do que isso, enquanto a linguagem é um universal antropológico (não há grupamento humano conhecido que não disponha de um idioma), a escrita é uma invenção relativamente moderna -e rara. Não surgiu mais do que três ou quatro vezes ao longo da história.
Nossas mentes, forjadas para uma existência pré-histórica, ainda não lidam bem com a escrita. Segundo a neurocientista Maryanne Wolf, da Universidade Tufts, autora de "Proust e a Lula: a História e a Ciência por Trás do Cérebro que Lê", dominar a leitura implica redesenhar o encéfalo, integrando, através de novas conexões neuronais, estruturas especializadas em linguagem, percepção visual e cognição.
É até possível esboçar um mapa dessas novas conexões. Elas interligam a área occipital-temporal que nos capacita a reconhecer os caracteres; uma zona no entorno da área de Broca, que nos habilita a compreender os fonemas nas palavras bem como o seu significado; e uma ampla região multifuncional que se estende dos lobos temporais superior e inferior até os lobos parietais e permite recrutar estruturas adicionais para o processamento fonológico e semântico.
Evidentemente, muita coisa pode dar errado no processo de criação de novas conexões. É o que explica muitas das dislexias. A própria capacidade de formar novos circuitos neuronais pode ser prejudicada. É o que ocorre com adultos -cujos cérebros são menos plásticos que os de crianças- que não foram alfabetizados quando pequenos. Passada uma certa idade crítica, aprender a ler se torna mais difícil.
Resta agora ver o que a neurociência tem a dizer a respeito dos métodos de alfabetização. O tema é explosivo e esconde acerbas divisões políticas.
De um lado estão o chamado método global e sistemas aparentados, como o desenvolvido pelo brasileiro Paulo Freire (1921-1997). Eles sustentam que a alfabetização deve ser um processo tão natural quanto possível. Apresentam-se aos alunos palavras e textos inteiros. A ideia é que, num segundo momento, o estudante decomponha o código escrito e deduza os elementos que o constituem.
Do outro está o método fônico, que é uma variante da antiga cartilha: "vovô viu a uva". Estudam-se os sons partindo dos mais "fáceis" para os mais "difíceis" até que o aluno se assenhore das regras da escrita.
Se a neurociência está certa e o que importa, pelo menos no início, é criar conexões entre áreas visuais, linguisticas e fonológicas, então métodos que enfatizam a repetição de padrões sonoros e os associam às letras (a boa e velha cartilha) tendem a ser mais efetivos. Estudos internacionais corroboram essa hipótese.


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