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ANÁLISE
Escrita não veio de "fábrica"
HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Alfabetizar uma pessoa é difícil porque nosso cérebro não
foi "projetado" para essa tarefa.
A comparação cabível é com
a aquisição da linguagem. Para
uma criança aprender um idioma, basta atirá-la numa comunidade onde se fale a língua em
questão. Em pouco tempo ela
estará proficiente. Não há necessidade de instrução formal.
Essa foi uma das razões que levou o linguista Noam Chomsky
a postular a hipótese, hoje largamente aceita, de que nossos
cérebros já vêm de fábrica com
um órgão da linguagem.
Com a escrita é bem diferente. O processo de alfabetização
não vem "naturalmente". Ele
precisa ser ensinado e exige
uma maturidade neurológica
que só surge por volta dos cinco
ou seis anos de idade.
Mais do que isso, enquanto a
linguagem é um universal antropológico (não há grupamento humano conhecido que não
disponha de um idioma), a escrita é uma invenção relativamente moderna -e rara. Não
surgiu mais do que três ou quatro vezes ao longo da história.
Nossas mentes, forjadas para
uma existência pré-histórica,
ainda não lidam bem com a escrita. Segundo a neurocientista
Maryanne Wolf, da Universidade Tufts, autora de "Proust e
a Lula: a História e a Ciência
por Trás do Cérebro que Lê",
dominar a leitura implica redesenhar o encéfalo, integrando,
através de novas conexões neuronais, estruturas especializadas em linguagem, percepção
visual e cognição.
É até possível esboçar um
mapa dessas novas conexões.
Elas interligam a área occipital-temporal que nos capacita a reconhecer os caracteres; uma
zona no entorno da área de
Broca, que nos habilita a compreender os fonemas nas palavras bem como o seu significado; e uma ampla região multifuncional que se estende dos
lobos temporais superior e inferior até os lobos parietais e
permite recrutar estruturas
adicionais para o processamento fonológico e semântico.
Evidentemente, muita coisa
pode dar errado no processo de
criação de novas conexões. É o
que explica muitas das dislexias. A própria capacidade de
formar novos circuitos neuronais pode ser prejudicada. É o
que ocorre com adultos -cujos
cérebros são menos plásticos
que os de crianças- que não foram alfabetizados quando pequenos. Passada uma certa idade crítica, aprender a ler se torna mais difícil.
Resta agora ver o que a neurociência tem a dizer a respeito
dos métodos de alfabetização.
O tema é explosivo e esconde
acerbas divisões políticas.
De um lado estão o chamado
método global e sistemas aparentados, como o desenvolvido
pelo brasileiro Paulo Freire
(1921-1997). Eles sustentam
que a alfabetização deve ser um
processo tão natural quanto
possível. Apresentam-se aos
alunos palavras e textos inteiros. A ideia é que, num segundo
momento, o estudante decomponha o código escrito e deduza
os elementos que o constituem.
Do outro está o método fônico, que é uma variante da antiga
cartilha: "vovô viu a uva". Estudam-se os sons partindo dos
mais "fáceis" para os mais "difíceis" até que o aluno se assenhore das regras da escrita.
Se a neurociência está certa e
o que importa, pelo menos no
início, é criar conexões entre
áreas visuais, linguisticas e fonológicas, então métodos que
enfatizam a repetição de padrões sonoros e os associam às
letras (a boa e velha cartilha)
tendem a ser mais efetivos. Estudos internacionais corroboram essa hipótese.
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