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São Paulo, quinta-feira, 14 de agosto de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Exceto os decorrentes de uso indevido"

Neste espaço, já tratei várias vezes de problemas relativos à coerência e à coesão textual, assunto presente nos vestibulares mais importantes do país. Nesses exames, têm-se incluído inúmeras questões em que se pede aos candidatos a identificação de trechos de textos em que há contradições entre o que se quer dizer e o que efetivamente se diz. Também se pede aos alunos que reescrevam os fragmentos em que há esse tipo de problema.
Há algum tempo, o vestibular da Unicamp pediu aos candidatos que identificassem a contradição presente neste trecho do "Termo de Garantia" de um equipamento eletrônico:
"A empresa garante este produto por 12 meses contra todos os defeitos de fabricação, exceto os decorrentes de uso indevido".
Vou dar uma pista. Releia o fragmento, se for preciso, e analise cuidadosamente o papel da preposição "exceto". E então? Essa palavrinha causa algum "ruído", ou seja, alguma contradição?
Causa, sim. O papel de "exceto" é excluir alguém ou algo do universo anteriormente citado. Quando se diz, por exemplo, que o técnico poderá contar com todos os jogadores, exceto Fulano de Tal, sabe-se que esse atleta integra o elenco daquele time e que ele é o único que o treinador não poderá escalar naquela partida.
Agora, relacione o exemplo que acabei de dar com o do trecho do termo de garantia. Já sabe qual é o "ruído" que a palavra "exceto" causa ali? Vamos lá: quando se diz "contra todos os defeitos de fabricação, exceto...", o que vem depois de "exceto" deve necessariamente fazer parte do universo anterior ("defeitos de fabricação").
Será que "defeitos decorrentes de uso indevido" fazem parte do universo de defeitos de fabricação? Certamente, não. Um defeito decorrente de uso indevido é, por exemplo, o que ocorre quando se conecta um aparelho à rede elétrica sem ajustar o seletor de voltagem. Contra esse defeito, não costuma haver garantia.
A intenção do redator certamente foi dizer que defeitos decorrentes de uso indevido não são cobertos pela garantia, mas não foi o que ocorreu. A contradição de que fala a questão está justamente no fato de que, lido literalmente, o texto faz um tipo de defeito pertencer a um universo do qual, na verdade, não faz parte. Definitivamente, defeitos de fabricação e defeitos decorrentes de uso indevido não pertencem ao mesmo universo.
Agora, é preciso reescrever o trecho. Que fazer? A tarefa não é difícil, desde que não se queira estabelecer relações que não existem. Por falar em "relações", não custa lembrar que não é à toa que as preposições integram o grupo das palavras relacionais.
Atrevo-me, agora, a sugerir estas soluções (entre tantas possíveis): "A empresa garante este produto por 12 meses contra todos os defeitos de fabricação. Não há garantia contra defeitos decorrentes de uso indevido"; "A empresa garante este produto (...) de fabricação. A empresa não se responsabiliza por defeitos decorrentes de uso indevido"; "A empresa (...) de fabricação. Defeitos decorrentes de uso indevido não são cobertos pela garantia". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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