São Paulo, quinta-feira, 14 de outubro de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"Vou ter que estar entrando"

A última coluna tratou da vírgula que separa o termo que explica do que é explicado (em "...o anjo que escutou, a Maria Sapoti") e da forma e do valor do gerúndio do verbo "vir" (em "...melodias vindo lá do quintal").
Alguns leitores questionaram o emprego do gerúndio em "...melodias vindo...". O argumento é antigo: trata-se de galicismo (uso de construção típica do francês). Sugerem esses leitores que no lugar de "vindo" se use "que vinham" ("...melodias que vinham"). Será?
Vejamos o que dizia o filólogo português Manuel Rodrigues Lapa (1897-1989) a respeito "deste passo de Eça de Queirós": "Os seus braços redondinhos descobriam por baixo, quando se erguiam, prendendo as tranças, fiozinhos louros frisando e fazendo ninho". Diz o lingüista: "Nenhum outro processo daria o colorido movimentado do gerúndio na caracterização do objeto".
R. Lapa se refere ao papel adjetivo de "frisando" e "fazendo" em relação a "fiozinhos", termo que, convém notar, funciona como complemento de "descobriam" (os braços redondinhos descobriam fiozinhos louros). R. Lapa diz ainda: "Para que havemos pois de banir da língua este instrumento expressivo, sob a acusação de que não era usado pelos nossos tresavós e nos veio diretamente do francês?".
Em seguida, o mestre português desmente a tese do galicismo ("...se apontam exemplos dessa construção em autores como M. Bernardes e A. Herculano").
R. Lapa cita também este trecho de "Se te Queres" ("Se te queres matar, por que não te queres matar?"), de Álvaro de Campos (heterônimo de F. Pessoa): "Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências". R. Lapa diz que Pessoa "tem artes de fazer do gerúndio um puro adjetivo".
Na semana passada, vimos que, em "...melodias vindo lá do quintal", o gerúndio indica basicamente a idéia de um processo em seu desenvolvimento, embora -é certo- não se possa excluir seu valor adjetivo nesse caso.
Pois é justamente a propriedade do gerúndio de revelar processos em seu desenvolvimento o que mostra a inadequação de frases como "Um minuto, que eu vou estar transferindo a ligação" ou "O senhor pode estar anotando o número?". As construções "flexões do verbo "poder" + estar + gerúndio" ou "flexões do verbo "ir" + estar + gerúndio" são da língua -há séculos.
O problema não está na estrutura, mas no mau uso que dela se tem feito. Quando se diz, por exemplo, "Não telefone nessa hora, porque eu vou estar almoçando", indica-se um processo (o almoço) que terá certa duração, que estará em curso, mas -santo Deus!-, quando se diz "Vou estar transferindo a ligação", emprega-se a construção "vou estar transferindo" para que se indique um processo que se realiza imediatamente. Quanto tempo se leva para a transferência de uma ligação? Meses ou segundos?
Há algum tempo, um motorista me disse: "Professor, agora o senhor vai ter que estar me dizendo em que rua eu vou ter que estar entrando". Se eu tivesse levado a sério a pergunta dele, teria respondido isto: "Naquela rua, naquela rua, naquela rua, naquela rua, naquela rua, naquela rua, naquela rua, naquela rua...". E, assim que ele entrasse na rua, eu deveria exigir que ele parasse o carro, engatasse a ré e ficasse entrando e saindo da rua, até moer a embreagem, os pneus... É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

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