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PASQUALE CIPRO NETO
"Vou ter que estar entrando"
A última coluna tratou da
vírgula que separa o termo
que explica do que é explicado
(em "...o anjo que escutou, a Maria Sapoti") e da forma e do valor
do gerúndio do verbo "vir" (em
"...melodias vindo lá do quintal").
Alguns leitores questionaram o
emprego do gerúndio em "...melodias vindo...". O argumento é antigo: trata-se de galicismo (uso de
construção típica do francês). Sugerem esses leitores que no lugar
de "vindo" se use "que vinham"
("...melodias que vinham"). Será?
Vejamos o que dizia o filólogo
português Manuel Rodrigues Lapa (1897-1989) a respeito "deste
passo de Eça de Queirós": "Os
seus braços redondinhos descobriam por baixo, quando se erguiam, prendendo as tranças, fiozinhos louros frisando e fazendo
ninho". Diz o lingüista: "Nenhum
outro processo daria o colorido
movimentado do gerúndio na caracterização do objeto".
R. Lapa se refere ao papel adjetivo de "frisando" e "fazendo" em
relação a "fiozinhos", termo que,
convém notar, funciona como
complemento de "descobriam"
(os braços redondinhos descobriam fiozinhos louros). R. Lapa
diz ainda: "Para que havemos
pois de banir da língua este instrumento expressivo, sob a acusação de que não era usado pelos
nossos tresavós e nos veio diretamente do francês?".
Em seguida, o mestre português
desmente a tese do galicismo
("...se apontam exemplos dessa
construção em autores como M.
Bernardes e A. Herculano").
R. Lapa cita também este trecho
de "Se te Queres" ("Se te queres
matar, por que não te queres matar?"), de Álvaro de Campos (heterônimo de F. Pessoa): "Pelo
grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências". R. Lapa
diz que Pessoa "tem artes de fazer
do gerúndio um puro adjetivo".
Na semana passada, vimos que,
em "...melodias vindo lá do quintal", o gerúndio indica basicamente a idéia de um processo em
seu desenvolvimento, embora -é
certo- não se possa excluir seu
valor adjetivo nesse caso.
Pois é justamente a propriedade
do gerúndio de revelar processos
em seu desenvolvimento o que
mostra a inadequação de frases
como "Um minuto, que eu vou estar transferindo a ligação" ou "O
senhor pode estar anotando o número?". As construções "flexões
do verbo "poder" + estar + gerúndio" ou "flexões do verbo "ir" + estar + gerúndio" são da língua
-há séculos.
O problema não está na estrutura, mas no mau uso que dela se
tem feito. Quando se diz, por
exemplo, "Não telefone nessa hora, porque eu vou estar almoçando", indica-se um processo (o almoço) que terá certa duração,
que estará em curso, mas -santo
Deus!-, quando se diz "Vou estar transferindo a ligação", emprega-se a construção "vou estar
transferindo" para que se indique
um processo que se realiza imediatamente. Quanto tempo se leva para a transferência de uma ligação? Meses ou segundos?
Há algum tempo, um motorista
me disse: "Professor, agora o senhor vai ter que estar me dizendo
em que rua eu vou ter que estar
entrando". Se eu tivesse levado a
sério a pergunta dele, teria respondido isto: "Naquela rua, naquela rua, naquela rua, naquela
rua, naquela rua, naquela rua,
naquela rua, naquela rua...". E,
assim que ele entrasse na rua, eu
deveria exigir que ele parasse o
carro, engatasse a ré e ficasse entrando e saindo da rua, até moer
a embreagem, os pneus... É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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