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PASQUALE CIPRO NETO
O presidente companheiro e o companheiro presidente
"Eu não sou propriamente
um autor defunto, mas
um defunto autor." Suponho que
o caro leitor tenha reconhecido a
frase, do início de "Memórias
Póstumas de Brás Cubas", obra-prima de Machado de Assis.
A compreensão do jogo "autor
defunto"/"defunto autor" é fundamental no intróito do mergulho no úbere mundo póstumo de
Brás Cubas. Simples de tudo, o recurso empregado por Machado é
um dos requintados temperos de
nossa riquíssima língua.
Sabemos que, quando tem valor
objetivo, o adjetivo costuma vir
depois do substantivo. Normalmente, não dizemos "Comprei
uma amarela camisa" ou "Prepare o café com mineral água".
Quando empregado com valor
subjetivo, o adjetivo costuma vir
antes do substantivo. Não se pode
dizer, por exemplo, que em "Fulano teve um triste fim" o adjetivo
"triste" possua o mesmo valor que
tem em "Fulano teve um fim triste". Pois é aí que está o xis do problema: a percepção dessas sutilezas nem sempre é tão tranquila
quanto talvez pareça. Assim não
fora, não haveria nos vestibulares
de ponta questões e mais questões
sobre o tema, com índice de acerto nem sempre satisfatório.
Mesmo casos surrados, como o
dos adjetivos "velho", "pobre",
"simples", "novo", "grande", entre outros, põem muita gente em
situação embaraçosa. Por incrível
que pareça, dizer "um simples
professor", para muitos candidatos, equivale a dizer "um professor simples"; dizer "um pobre homem" equivale a dizer "um homem pobre" e assim por diante.
Essa turma provavelmente tenha dificuldade para entender o
jogo de Machado de Assis ("autor
defunto"/"defunto autor") ou a
frase que o presidente eleito, Luiz
Inácio Lula da Silva, proferiu no
dia 27 de outubro: "Pela primeira
vez, o povo tem um presidente
companheiro e um companheiro
presidente".
Machadiano, Lula fez com
"presidente companheiro"/"companheiro presidente" exatamente
o que fez no início de "Memórias
Póstumas" nosso grande bruxo
("A um Bruxo, com Amor" é o nome de um poema que Carlos
Drummond de Andrade escreveu
em homenagem a Machado).
A ordem das palavras deve sempre merecer cuidado especial. A
posição de adjetivos empregados
como modificadores de complementos de verbos como "manter",
"deixar", "encontrar", "fazer",
entre outros, pode ser decisiva para a definição do sentido do texto.
Numa frase como "Encontraram
morto o cavalo", por exemplo,
não há dúvida sobre o que se quer
dizer; em "Encontraram o cavalo
morto", no entanto, pode-se não
saber se, antes do início da procura, já se tinha conhecimento do
estado do animal.
Em "Quem faz forte um curso...", não há dúvida sobre o que
se quer afirmar. O problema é
que, às vezes, para transmitir a
idéia contida nessa frase, há
quem prefira dizer "Quem faz um
curso forte...".
Quer mais um exemplo? Vamos
lá: que diferença há entre "Deixei
limpas as ruas" e "Deixei as ruas
limpas"? A esta altura, creio que
você já tenha percebido que a segunda frase pode ser ambígua.
Como se vê, caro leitor, por trás
da ordem das palavras há muito
mais coisas do que talvez suponha nossa vã filosofia. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
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