São Paulo, quinta-feira, 14 de novembro de 2002

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PASQUALE CIPRO NETO

O presidente companheiro e o companheiro presidente

"Eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor." Suponho que o caro leitor tenha reconhecido a frase, do início de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", obra-prima de Machado de Assis.
A compreensão do jogo "autor defunto"/"defunto autor" é fundamental no intróito do mergulho no úbere mundo póstumo de Brás Cubas. Simples de tudo, o recurso empregado por Machado é um dos requintados temperos de nossa riquíssima língua.
Sabemos que, quando tem valor objetivo, o adjetivo costuma vir depois do substantivo. Normalmente, não dizemos "Comprei uma amarela camisa" ou "Prepare o café com mineral água".
Quando empregado com valor subjetivo, o adjetivo costuma vir antes do substantivo. Não se pode dizer, por exemplo, que em "Fulano teve um triste fim" o adjetivo "triste" possua o mesmo valor que tem em "Fulano teve um fim triste". Pois é aí que está o xis do problema: a percepção dessas sutilezas nem sempre é tão tranquila quanto talvez pareça. Assim não fora, não haveria nos vestibulares de ponta questões e mais questões sobre o tema, com índice de acerto nem sempre satisfatório.
Mesmo casos surrados, como o dos adjetivos "velho", "pobre", "simples", "novo", "grande", entre outros, põem muita gente em situação embaraçosa. Por incrível que pareça, dizer "um simples professor", para muitos candidatos, equivale a dizer "um professor simples"; dizer "um pobre homem" equivale a dizer "um homem pobre" e assim por diante.
Essa turma provavelmente tenha dificuldade para entender o jogo de Machado de Assis ("autor defunto"/"defunto autor") ou a frase que o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, proferiu no dia 27 de outubro: "Pela primeira vez, o povo tem um presidente companheiro e um companheiro presidente".
Machadiano, Lula fez com "presidente companheiro"/"companheiro presidente" exatamente o que fez no início de "Memórias Póstumas" nosso grande bruxo ("A um Bruxo, com Amor" é o nome de um poema que Carlos Drummond de Andrade escreveu em homenagem a Machado).
A ordem das palavras deve sempre merecer cuidado especial. A posição de adjetivos empregados como modificadores de complementos de verbos como "manter", "deixar", "encontrar", "fazer", entre outros, pode ser decisiva para a definição do sentido do texto. Numa frase como "Encontraram morto o cavalo", por exemplo, não há dúvida sobre o que se quer dizer; em "Encontraram o cavalo morto", no entanto, pode-se não saber se, antes do início da procura, já se tinha conhecimento do estado do animal.
Em "Quem faz forte um curso...", não há dúvida sobre o que se quer afirmar. O problema é que, às vezes, para transmitir a idéia contida nessa frase, há quem prefira dizer "Quem faz um curso forte...".
Quer mais um exemplo? Vamos lá: que diferença há entre "Deixei limpas as ruas" e "Deixei as ruas limpas"? A esta altura, creio que você já tenha percebido que a segunda frase pode ser ambígua.
Como se vê, caro leitor, por trás da ordem das palavras há muito mais coisas do que talvez suponha nossa vã filosofia. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

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