São Paulo, quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

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PASQUALE CIPRO NETO

Conectando


Para resolver esse tipo de questão, não basta decorar meia dúzia de conectivos e suas "classificações"


O ÚLTIMO VESTIBULAR do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) exigiu dos alunos a leitura de dois contundentes textos sobre uma das tantas vergonhas nacionais: essa pequenez d'alma (ai, Pessoa!) chamada "trote". Um dos textos é "O ritual brasileiro do trote" (de Vinicius T. Freire); o outro é "Vagabundagem universitária começa no trote" (de Marilene Felinto) -ambos publicados pela Folha, um nove anos depois do outro, mas os dois tristemente atuais.
Uma das questões baseava-se neste trecho do texto de Freire: "De vez em quando, ferem, aleijam ou matam um garoto na cretinice do trote. Ninguém é punido. Os oligarcas velhos relevam: "acidente'". A questão pedia o seguinte: "Quais conectivos NÃO podem ser colocados entre a primeira e a segunda frase e entre esta e a terceira, respectivamente, preservando-se o sentido proposto pelo texto?".
As alternativas eram estas: "a) pois; e; b) porém; pois; c) e; porque; d) mas; e; e) porque; mas". Para melhor entendimento das relações que há na passagem escolhida pela banca, convém ler esta, imediatamente anterior: "Como universidade até outro dia era privilégio oligárquico, o trote nasceu na oligarquia, imitada pelos arrivistas. Da oligarquia veio ainda o ritual universitário do assalto a restaurantes ("pindura'), rito de iniciação pelo qual certa elite indica que se exclui da ordem legal dos comuns".
Talvez seja bom lembrar que, ao pé da letra, "oligarquia" significa "governo de poucos". Também é bom lembrar que "arrivista" significa "pessoa inescrupulosa, que quer vencer na vida a todo custo".
Não resisto à tentação de dizer (pela enésima vez) que para resolver esse tipo de questão não basta ter decorado meia dúzia de conectivos e seus respectivos valores e classificações. É fundamental ter vocabulário formal, perceber os nexos que se estabelecem entre as afirmações feitas no texto, captar as relações estabelecidas com a pontuação etc. Em suma, é preciso saber ler "plenamente" o texto.
Bem, acho que agora vai... Então vamos. Que relações podem existir entre a primeira frase ("De vez em quando, ferem, aleijam ou matam um garoto na cretinice do trote") e a segunda ("Ninguém é punido")? A primeira que vem à mente certamente é a de adversidade clássica ("...mas/ porém ninguém é punido"), mas uma análise mais atenta permite que se pense também em adição ("...e ninguém é punido") ou explicação, motivo, razão ("...pois/ porque ninguém é punido"). Como se vê, por enquanto nenhuma das cinco opções está fora do páreo.
Vamos às possíveis relações entre a segunda frase ("Ninguém é punido") e a terceira ("Os oligarcas velhos relevam: "acidente'"). Temos aí a hipótese de adição ("Ninguém é punido, e os velhos oligarcas...") e a de explicação, motivo, razão ("Ninguém é punido, pois/ porque os oligarcas velhos...").
Moral da história: entre a segunda frase e a terceira, só não cabe a idéia de adversidade. A resposta, portanto, é "e". O caro leitor percebeu que, se a forma verbal "relevam" for lida como "revelam", vai tudo por água abaixo?
Nas próximas duas semanas, estarei em férias. É isso.

inculta@uol.com.br


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