São Paulo, quinta-feira, 15 de abril de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"A assunção do comando..."

A coisa tá feia, muito feia. Os últimos números e fatos mostram que o Brasil (e não só o Rio) está em guerra civil. E em guerra de palavras também.
Anteontem, autoridades federais trocaram farpas verbais com autoridades estaduais. No rádio, alguém disse que ao povo não interessa se o bandido é municipal, estadual ou federal, o que me trouxe à memória "Política Literária", genial poema de "Alguma Poesia", primeiro livro (de 1930) de Carlos Drummond de Andrade: "O poeta municipal / discute com o poeta estadual / qual deles é capaz de bater o poeta federal. / Enquanto isso o poeta federal / tira ouro do nariz".
Pois bem, em entrevista coletiva, o ministro da Justiça usou a palavra "assunção" ("...com a assunção do comando pelas Forças Armadas..."). O que é "assunção" (que, no caso, obviamente não é a capital do Paraguai)? É simplesmente o "ato de assumir". O ministro quis dizer que, se interviessem, as Forças Armadas assumiriam o comando. Em "assunção do comando", a expressão "do comando" funciona como alvo, objeto do processo expresso pelo nome (substantivo) "assunção".
Pois era aí que eu queria chegar. Nem sempre o que se liga pela preposição "de" a nomes como "assunção" exerce o papel de alvo, objeto ou receptor do processo expresso pelo nome. Quando se fala, por exemplo, da Assunção de Nossa Senhora (que se celebra em 15 de agosto), faz-se referência à elevação da mãe de Cristo ao Céu, ao Reino de Deus, ou seja, ao fato de que ela assumiu seu lugar ao lado do Filho. Em "Assunção de Nossa Senhora", portanto, a expressão "de Nossa Senhora" indica o executor do processo expresso pelo nome abstrato "assunção".
Há algum tempo, lembrei neste espaço um poema de Drummond ("Congresso Internacional do Medo", do livro "Sentimento do Mundo", de 1940), em que o grande poeta se vale da ambigüidade decorrente do emprego da preposição "de" com o nome abstrato "medo" ("...o medo dos soldados...", "...cantaremos o medo dos ditadores..."). Os soldados e os ditadores temem ou são temidos?
Nesse mesmo livro ("Sentimento do Mundo", que, é bom repetir, é de 1940 -vive-se outra guerra), encontra-se o poema "Mãos Dadas": "Não serei o poeta de um mundo caduco. / Também não cantarei o mundo futuro. / Estou preso à vida e olho meus companheiros. / Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. / Ente eles, considero a enorme realidade. / O presente é tão grande, não nos afastemos. / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas". Que se entende por "Não serei o poeta de um mundo caduco"? Qual é o papel da expressão "de um mundo caduco" em relação ao substantivo "poeta"?
Releia o fragmento do poema, caro leitor, e veja com atenção o segundo verso ("Também não cantarei o mundo futuro"). Depois, analise bem os versos seguintes. Percebeu? O contexto nos permite dizer que "Não serei o poeta de um mundo caduco" pode equivaler a algo como "Não poetarei (ou "poetizarei") um mundo caduco", ou seja, esse mundo caduco não será o alvo, o objeto da minha poesia.
Pode-se dizer, portanto, que "do comando" (de "a assunção do comando") está para "assunção" como "de um mundo caduco" está para "poeta". Também se pode dizer que o mundo caduco está mais vivo do que nunca. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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