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PASQUALE CIPRO NETO
"A assunção do comando..."
A coisa tá feia, muito feia.
Os últimos números e fatos
mostram que o Brasil (e não só o
Rio) está em guerra civil. E em
guerra de palavras também.
Anteontem, autoridades federais trocaram farpas verbais com
autoridades estaduais. No rádio,
alguém disse que ao povo não interessa se o bandido é municipal,
estadual ou federal, o que me
trouxe à memória "Política Literária", genial poema de "Alguma
Poesia", primeiro livro (de 1930)
de Carlos Drummond de Andrade: "O poeta municipal / discute
com o poeta estadual / qual deles
é capaz de bater o poeta federal. /
Enquanto isso o poeta federal / tira ouro do nariz".
Pois bem, em entrevista coletiva, o ministro da Justiça usou a
palavra "assunção" ("...com a assunção do comando pelas Forças
Armadas..."). O que é "assunção"
(que, no caso, obviamente não é a
capital do Paraguai)? É simplesmente o "ato de assumir". O ministro quis dizer que, se interviessem, as Forças Armadas assumiriam o comando. Em "assunção
do comando", a expressão "do comando" funciona como alvo, objeto do processo expresso pelo nome (substantivo) "assunção".
Pois era aí que eu queria chegar. Nem sempre o que se liga pela preposição "de" a nomes como
"assunção" exerce o papel de alvo, objeto ou receptor do processo
expresso pelo nome. Quando se
fala, por exemplo, da Assunção de
Nossa Senhora (que se celebra em
15 de agosto), faz-se referência à
elevação da mãe de Cristo ao Céu,
ao Reino de Deus, ou seja, ao fato
de que ela assumiu seu lugar ao
lado do Filho. Em "Assunção de
Nossa Senhora", portanto, a expressão "de Nossa Senhora" indica o executor do processo expresso
pelo nome abstrato "assunção".
Há algum tempo, lembrei neste
espaço um poema de Drummond
("Congresso Internacional do
Medo", do livro "Sentimento do
Mundo", de 1940), em que o grande poeta se vale da ambigüidade
decorrente do emprego da preposição "de" com o nome abstrato
"medo" ("...o medo dos soldados...", "...cantaremos o medo dos
ditadores..."). Os soldados e os ditadores temem ou são temidos?
Nesse mesmo livro ("Sentimento do Mundo", que, é bom repetir,
é de 1940 -vive-se outra guerra),
encontra-se o poema "Mãos Dadas": "Não serei o poeta de um
mundo caduco. / Também não
cantarei o mundo futuro. / Estou
preso à vida e olho meus companheiros. / Estão taciturnos mas
nutrem grandes esperanças. / Ente eles, considero a enorme realidade. / O presente é tão grande,
não nos afastemos. / Não nos
afastemos muito, vamos de mãos
dadas". Que se entende por "Não
serei o poeta de um mundo caduco"? Qual é o papel da expressão
"de um mundo caduco" em relação ao substantivo "poeta"?
Releia o fragmento do poema,
caro leitor, e veja com atenção o
segundo verso ("Também não
cantarei o mundo futuro"). Depois, analise bem os versos seguintes. Percebeu? O contexto nos
permite dizer que "Não serei o
poeta de um mundo caduco" pode equivaler a algo como "Não
poetarei (ou "poetizarei") um
mundo caduco", ou seja, esse
mundo caduco não será o alvo, o
objeto da minha poesia.
Pode-se dizer, portanto, que "do
comando" (de "a assunção do comando") está para "assunção"
como "de um mundo caduco" está para "poeta". Também se pode
dizer que o mundo caduco está
mais vivo do que nunca. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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