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São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Um dos maiores erros ortográficos"

Na semana passada, para analisar a ambiguidade decorrente da posição do advérbio "somente" em certas frases, referi-me a uma questão do último vestibular da Fuvest. A discussão sobre o emprego de "somente" compunha um dos itens da questão. O outro item era este:
"Noticiando o lançamento de um dicionário de filmes brasileiros, um jornal fez o seguinte comentário a propósito do filme "Aluga-se Moças", de 1981: "O título traz um dos maiores erros ortográficos já vistos no cinema brasileiro. O título correto seria "Alugam-se Moças". O comentário e a correção feitos pelo jornal são justificáveis do ponto de vista gramatical? Por quê?".
Fosse você o candidato, caro leitor, que responderia? Note que, na primeira pergunta da banca, há dois itens: comentário e correção. Comecemos pelo comentário ("um dos maiores erros ortográficos"). É justificável? Se você pensou em dizer "sim", é melhor repensar. Por dois motivos, a resposta é "não", um rotundo "não".
O primeiro motivo é óbvio: que "régua" se utilizou para a afirmação de que se trata de "um dos maiores erros ortográficos"?
O segundo motivo é técnico: a ortografia diz respeito ao "conjunto das regras que estabelecem a grafia correta das palavras de uma língua". Haveria problemas de natureza ortográfica se a palavra "moças", por exemplo, fosse grafada com "xç" ("moxças").
Sem querer, o próprio jornal dá a pista do "erro", ao dizer que o título correto seria "Alugam-se moças". Como se vê, o problema não é de natureza ortográfica; é de natureza sintática, já que envolve mecanismos de concordância verbal. Temos aí o que a gramática tradicional chama de voz passiva sintética, caso em que o verbo deve concordar com o sujeito paciente ("moças"). Na norma escrita culta, a forma correta realmente seria "Alugam-se moças".
Moral da história: a resposta ao primeiro item da primeira questão é "não" (o comentário não é justificável); a resposta ao segundo é "sim", já que a correção feita pelo jornal é boa, sob a óptica da norma escrita culta. A resposta à segunda pergunta ("Por quê?") obviamente é composta por todo o comentário feito até aqui.
Que quis a banca com essa questão? Não é difícil responder. Os examinadores deixaram claro que consideram importantes dois conhecimentos: o operacional e o nomenclatural (básico). Para a banca, o candidato precisa saber que ortografia não é sintaxe.
Nesse quesito, o papel do professor de português é decisivo. Quando trata de ortografia, por exemplo, o mínimo que ele precisa fazer é lembrar que o "orto" dessa palavra é o mesmo de "ortodontia", "ortopedia" ou "ortóptica". O elemento grego "orto" significa "reto", "direito", "em linha reta", "correto". A ortografia, portanto, trata da grafia correta. A sintaxe trata da engenharia do texto, da montagem da frase, da disposição das palavras etc.
Nos meios educacionais, muito se tem discutido sobre a importância do conhecimento nomenclatural. Por essa e por outras questões da Fuvest, parece claro que o candidato a uma vaga na USP precisa conhecer ao menos os rudimentos do assunto. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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