|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
O camundongo tenor
Perto dele, Susan Boyle,
a escocesa que um programa tinha revelado como
grande cantora, era fichinha
|
Um gene que cientistas suspeitam que esteja envolvido no desenvolvimento da
linguagem humana foi inserido em camundongos na Alemanha. Como resultado, os roedores demonstraram uma série de alterações vocais e de comportamento. Ciência, 1º de junho de 2009
AS PRIMEIRAS mudanças ocorridas no camundongo que tinha
recebido o gene com características da linguagem humana foram
surpreendentes. O bicho já não emitia os fracos guinchos característicos
de sua espécie; pelo contrário, os
sons que emitia eram altos e fortes,
tão altos e tão fortes que faziam tremer os outros roedores. E isso ainda
não era nada comparado com o que
estava por vir.
Aos poucos, os pesquisadores começaram a notar que as mudanças
não se restringiam a isso, que o camundongo não apenas guinchava:
ele agora tinha uma voz indiscutivelmente humana. Falava como uma
pessoa do sexo masculino. Falava,
não. Na verdade, cantava. E cantava
muito bem, com uma excelente voz
de tenor. Árias como "Nessun Dorma", da ópera "Turandot", de Giaccomo Puccini saíam de sua garganta
com a maior facilidade: "Nessun dorma!... Tu pure, o Principessa,/ nella
tua fredda stanza/ guardi le stelle".
Mas como teria sido isso possível?
O mistério foi esclarecido quando
se soube que o anônimo doador
-um humilde funcionário do laboratório- era cantor nas horas vagas.
Mas cantor apenas razoável. A mudança genética ocorrida no camundongo acompanhara-se de um verdadeiro milagre. Ele cantava todo o
repertório do funcionário com voz
excepcional. Perto dele, Susan Boyle,
a escocesa que um programa de amadores tinha revelado como grande
cantora, era fichinha.
A notícia se espalhou e logo apareceu no laboratório um famoso empresário, entusiasmado com a história do camundongo tenor. "Isto não
pode ficar restrito a um instituto de
pesquisas", disse ao diretor. O mundo precisava conhecer aquele prodígio. Mais que isso: a enorme renda a ser proporcionada pelos concertos
do camundongo poderia financiar a
instituição, que, por causa da crise, lidava com enormes dificuldades.
Ainda assim o diretor estava indeciso. Temia ser acusado de mercenário, de ter utilizado uma originalíssima pesquisa como forma de ganhar
dinheiro, mesmo que a grana fosse
para finalidades nobres. Reuniu a
equipe, discutiram longamente e depois de uma apertada votação decidiram assinar o contrato que lhes era
apresentado pelo empresário. Uma
cláusula desse contrato dizia que o
roedor ficaria sob a guarda do próprio empresário.
Infausto dispositivo.
Assinado o contrato, o empresário
foi para sua casa, levando a gaiola com
o camundongo tenor. Colocou-a na
sala de visitas e, depois de deixar bastante queijo (da melhor qualidade)
para o contratado, foi dormir, feliz.
Esperava acordar de manhã com o
"Nessun Dorma". Mas isto não
aconteceu. Reinava o maior silêncio
no apartamento. Tomado por maus
pressentimentos, o homem correu
até a sala de visitas.
A gaiola estava vazia. Sua frágil
portinhola tinha sido arrombada.
Por quem? Por algum empresário rival? Não. A resposta encontrava-se
ali mesmo.
Diante da gaiola, com ar satisfeito,
estava o gato do empresário. Que,
evidentemente, tinha feito uma lauta refeição. E acabara com os planos
de seu dono.
O empresário espera que o gato,
tendo incorporado o material genético do camundongo, transforme-se
também num tenor. Mas isso, pelo
jeito, não vai acontecer. O gato continua miando como todos os outros gatos. Um miado muito desagradável.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
Texto Anterior: Entre os apelos, "coragem" para amar idosos Próximo Texto: A cidade é sua Índice
|