|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
PASQUALE CIPRO NETO
Absoluto e relativo (2)
"Junto à minha rua havia
um bosque,/ que um muro
alto proibia/ Lá todo balão caía,/
toda maçã nascia/ E o dono do
bosque nem via." Esses versos estão no início de "Até Pensei",
obra-prima que Chico Buarque
escreveu aos 24 anos.
Diz a lenda que Chico se refere a
um casarão em que morou, localizado -salvo engano- numa
das travessas da avenida Paulista
ou na região do Pacaembu, na
São Paulo dos anos 50 ou 60.
Na Paulista de hoje, quase não
há casarões. No lugar deles, prédios de gosto duvidoso. Que sentirá quando passa diante de um
desses espigões alguém que,
quando criança ou jovem, tenha
morado num casarão que, demolido, tenha dado lugar a um vítreo charuto vertical? Orgulho?
Ou melancolia?
"Mutatis mutandis", foi o que
perguntou aos candidatos a Fuvest, em uma de suas mais memoráveis provas de redação. Apresentou-se aos candidatos um
quadro do pintor belga René Magritte, em que se viam um cachimbo e esta frase (para muitos,
desconcertante): "Isto continua a
não ser um cachimbo".
Associados à reprodução do
quadro de Magritte, dois trechos
literários. O primeiro, de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de
Machado de Assis: "Voltemos à
casinha. Não serias capaz de lá
entrar hoje, curioso leitor; envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o
proprietário deitou-a abaixo para substituí-la por outra, três vezes maior, mas juro-te que muito
menor que a primeira. O mundo
era estreito para Alexandre; um
desvão de telhado é o infinito para as andorinhas". O segundo, de
Fernando Pessoa (Alberto Caeiro): "O Tejo é mais belo que o rio
que corre pela minha aldeia,/
Mas o Tejo não é mais belo que o
rio que corre pela minha aldeia/
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia".
Por fim, a proposta da banca da
Fuvest: "A partir da relação entre
o quadro e os textos, é possível
afirmar que tudo é relativo? E que
a realidade é uma ilusão?".
Pois bem, neste espaço, várias
vezes me referi ao tema da relatividade conceitual. Na semana
passada, particularmente, referi-me a algumas obrigações do professor de português no que diz respeito ao ensino das classes de palavras. Uma delas é a de explicar
aos alunos a origem dos nomes
dessas classes; outra é mostrar a
necessidade de ler a frase, de levar
em conta o texto, o contexto em
que o termo é usado. A questão
não é absoluta, é relativa.
Terminei afirmando que esse
pode ser o início de uma bela viagem pelo mundo das palavras e
daí pelo das idéias. O tema da Fuvest é prova cabal disso. Acostumados ao pão, pão, queijo, queijo,
muitos alunos simplesmente
enlouqueceram diante da afirmação de Magritte de que aquilo
continuava a não ser um cachimbo. "O que é então? Uma vaca
voadora?". Tanto não é um cachimbo (mas apenas uma tentativa de reprodução gráfica de um
deles) que não é possível apanhá-lo, colocar fumo etc. "E o Tejo? É
mais belo ou não é?" É, mas não é.
Na aula de geografia, pobre do rio
da minha aldeia. Simplesmente
não existe. O rio é o Tejo. Na prática, porém, para mim o Tejo nada mais é do que um risco no mapa. O rio da minha vida é mesmo
o da minha aldeia. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br
Texto Anterior: Plano Diretor: Para especialistas, projeto continua precário Próximo Texto: Trânsito: CET bloqueia alça de acesso ao vd. Bresser Índice
|