São Paulo, quinta-feira, 15 de agosto de 2002

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PASQUALE CIPRO NETO

Absoluto e relativo (2)

"Junto à minha rua havia um bosque,/ que um muro alto proibia/ Lá todo balão caía,/ toda maçã nascia/ E o dono do bosque nem via." Esses versos estão no início de "Até Pensei", obra-prima que Chico Buarque escreveu aos 24 anos.
Diz a lenda que Chico se refere a um casarão em que morou, localizado -salvo engano- numa das travessas da avenida Paulista ou na região do Pacaembu, na São Paulo dos anos 50 ou 60.
Na Paulista de hoje, quase não há casarões. No lugar deles, prédios de gosto duvidoso. Que sentirá quando passa diante de um desses espigões alguém que, quando criança ou jovem, tenha morado num casarão que, demolido, tenha dado lugar a um vítreo charuto vertical? Orgulho? Ou melancolia?
"Mutatis mutandis", foi o que perguntou aos candidatos a Fuvest, em uma de suas mais memoráveis provas de redação. Apresentou-se aos candidatos um quadro do pintor belga René Magritte, em que se viam um cachimbo e esta frase (para muitos, desconcertante): "Isto continua a não ser um cachimbo".
Associados à reprodução do quadro de Magritte, dois trechos literários. O primeiro, de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis: "Voltemos à casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curioso leitor; envelheceu, enegreceu, apodreceu, e o proprietário deitou-a abaixo para substituí-la por outra, três vezes maior, mas juro-te que muito menor que a primeira. O mundo era estreito para Alexandre; um desvão de telhado é o infinito para as andorinhas". O segundo, de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro): "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia".
Por fim, a proposta da banca da Fuvest: "A partir da relação entre o quadro e os textos, é possível afirmar que tudo é relativo? E que a realidade é uma ilusão?".
Pois bem, neste espaço, várias vezes me referi ao tema da relatividade conceitual. Na semana passada, particularmente, referi-me a algumas obrigações do professor de português no que diz respeito ao ensino das classes de palavras. Uma delas é a de explicar aos alunos a origem dos nomes dessas classes; outra é mostrar a necessidade de ler a frase, de levar em conta o texto, o contexto em que o termo é usado. A questão não é absoluta, é relativa.
Terminei afirmando que esse pode ser o início de uma bela viagem pelo mundo das palavras e daí pelo das idéias. O tema da Fuvest é prova cabal disso. Acostumados ao pão, pão, queijo, queijo, muitos alunos simplesmente enlouqueceram diante da afirmação de Magritte de que aquilo continuava a não ser um cachimbo. "O que é então? Uma vaca voadora?". Tanto não é um cachimbo (mas apenas uma tentativa de reprodução gráfica de um deles) que não é possível apanhá-lo, colocar fumo etc. "E o Tejo? É mais belo ou não é?" É, mas não é. Na aula de geografia, pobre do rio da minha aldeia. Simplesmente não existe. O rio é o Tejo. Na prática, porém, para mim o Tejo nada mais é do que um risco no mapa. O rio da minha vida é mesmo o da minha aldeia. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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