São Paulo, terça, 15 de setembro de 1998

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Da infelicidade de ser dinheiro brasileiro

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Era uma vez um dinheiro, nota rala, farrapo de papel-moeda, desses que se carrega e... paga o desconforto do ônibus ruim, o transporte sem qualidade. A moedazinha leve também não vale nada. Mas onde está a felicidade? Não bastava a Copa do Mundo? Todo mundo de verde-amarelo, todo o Brasil "pra frente"? Cadê o orgulho? Cadê o patriotismo, a baboseira toda?
Era tudo ilusão -o dinheiro que o governo diz que tem (ou tinha), não tem (ou não tinha), nunca teve. Os tais US$ 70 "confortáveis" bilhões, as tais "reservas" que esses homens engravatados enchem a boca para dizer que o Brasil tem (ou tinha). Nunca teve. Era tudo dos outros.
Uma irresponsabilidade de paletó e gravata. Agora é se preparar para a sucessão de desgraças: a compra da casa própria com financiamento (com prestação fixa, aquela baboseira toda) era mentira. Os 49% de juros ao ano vão inchar o saldo devedor, levar para o espaço a prestação.
Mas onde está a felicidade? Não é no dinheiro? Quem tinha muito continuará tendo. Rico brasileiro não arrisca. Ao menor sinal de crise, despede os empregados e manda seus preciosos dólares para fora: sem pagar taxa, sem declarar no Imposto de Renda. Ouvi dizer que a dolaria sai toda escondida, por uma cidade obscura no Norte do país.
Quer dizer: o calote é duplo, das elites do poder brasileiro, os milionários daqui mesmo, e dos gringos que aplicam dinheiro aqui para ganhar 49% de juros ao ano e se mandarem na hora que bem entendem.
É simples: O Brasil está na miséria porque não poupa, gasta mais do que ganha, fica na mão dos agiotas, não cobra imposto de quem deveria.
Trouxa é quem anda com esse papelzinho-moeda amarfanhado no bolso, é quem (como o Brasil) está devendo aos agiotas do cartão de crédito, é quem comprou um carro popular em 36 prestações.
Era tudo mentira. Agora é se preparar para perder o emprego, passar fome, ter o nome sujo na praça e virar bandido por absoluta falta de opção: é assim que o Brasil fabrica bandidos aos magotes, de todos os quilates e tipos.
Cadê o patriotismo? Cadê o país maravilha do futebol? A felicidade está no dinheiro que tivéssemos, que não fosse brasileiro. A felicidade não está no prazer do amor, não está na virtude nem no conhecimento -está na posse de bens exteriores, é isso que os governantes do Brasil ensinam. E eles querem mais: querem se reeleger, continuar brincando de faz-de-conta, arrombando os cofres e os pobres de sempre.
Mas onde está a felicidade, hein?, perguntava-se um escritor português. E ele começa a responder descrevendo a merecida infelicidade humana:
"A história assim começa fria e desgraciosamente. É uma espécie de Ano do Nascimento. A descrição de uma tempestade, saraiva a estalar nas vidraças, o vento norte a assobiar nos forros, o arvoredo secular a ramalhar rangendo, e duas dúzias mais de caretas que a natureza faz à humanidade espavorida (...)" (Camilo Castelo Branco, "Onde Está a Felicidade?").


E-mailmfelinto@uol.com.br



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