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São Paulo, quarta-feira, 15 de outubro de 2003

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URBANIDADE

Vincenzo Scarpellini
AVENIDA IPIRANGA Naufrágios urbanos, fúria das ondas, silêncio dos abismos. Ao olho que contempla a cidade de manhã cedo as ruas aparecem como um areal, submerso durante a noite, em que o fluxo da maré, retiradas as águas com lenta e infinita monotonia, abandona despojos e peixes encalhados nas grades dos condutos de areação. (VINCENZO SCARPELLINI)


Vida "loca"

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

Maria Madalena Rutschka, quando, há quatro anos, resolveu trabalhar como motogirl, tinha pelo menos duas idéias ao escolher a nova profissão -uma delas inconfessável.
Desempregada, com quase 40 anos, viu na moto uma fonte de renda para ela, que já estava deslocada do mercado. Desesperada, encontrou uma saída para não se matar e para aplacar a dor provocada pela lembrança do filho, que se afogou num rio durante as férias. Era apenas uma questão de tempo -Maria Madalena imaginava- espatifar-se em colisão com algum automóvel. "Não conseguia suportar a perda do meu filho, precisava fazer algo tão agitado, elétrico, que não me deixasse pensar e também me ajudasse a ir embora com ele."
Foi-se o desespero, ficou o emprego. Sentiu-se acolhida pela tribo dos motoboys, aprendeu a suportar a dor da perda do filho, superou a vontade de se matar, fez da profissão um jeito de viver e, a partir deste mês, torna-se uma das estrelas da tribo mais visível e ruidosa da paisagem paulistana.
Maria Madalena é uma das personagens do documentário "Motoboys, Vida Loca", do publicitário Caíto Ortiz e do jornalista Giuliano Cedroni, a ser lançado na próxima semana na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Durante um ano, eles acompanharam as aventuras e desventuras de oito motoboys para entender os códigos daquela tribo. "Queríamos mostrar o outro lado desses personagens tão demonizados na cidade", conta Giuliano. Para Caíto, significou uma viagem nesses personagens tão próximos, zanzando perigosamente entre os automóveis, xingados pelos motoristas, mas tão distantes. "Estamos captando um pedaço da alma de São Paulo, na sua modernidade e no seu atraso", diz Caíto.
Além dos personagens, Caíto e Giuliano saíram atrás das estatísticas e descobriram estupendas falhas. Ao desmontarem as estatísticas oficiais, verificando relatórios nos prontos-socorros e ouvindo médicos, perceberam que Maria Madalena estava certa quando viu na profissão um jeito, digamos, prático de se suicidar. Eles puderam constatar que os dados oficiais estão subestimados: a cada dia, morrem, pelo menos, três motoqueiros em São Paulo, o que faz da sua profissão a mais "loca" da cidade.

E-mail - gdimen@uol.com.br


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