São Paulo, quinta, 15 de outubro de 1998

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OPINIÃO

Um caso de saúde pública

GILDA ALMEIDA DE SOUZA

Neste ano, o país foi surpreendido pelo derrame de medicamentos falsificados no mercado. O crime, que agride e assusta a população, é apenas um dos sintomas da falência do sistema nacional de saúde e mostra o agravamento de uma situação que não tem merecido dos Poderes a atenção que exige.
Basta lembrar as denúncias sobre contaminação de produtos para nutrição parenteral, as mortes consequentes de procedimentos de hemodiálise impróprios e o funcionamento de farmácias clandestinas em todo o Brasil.
Diante desse quadro, o secretário do órgão público responsável pela fiscalização e controle dos medicamentos diz que "a aplicação da legislação sanitária é uma fábula" e que a Vigilância Sanitária não vai aplicar a lei vigente.
Durante encontro em Brasília no início de setembro, Gonzalo Vecina Neto propôs que as entidades ali presentes, entre elas a Federação Nacional dos Farmacêuticos, firmassem um acordo para implantação de uma "assistência farmacêutica temporária".
Em oposição a essa proposta estapafúrdia, a Fenafar propõe o cumprimento da lei. Os medicamentos são insumo essencial à promoção e à recuperação da saúde das pessoas; por isso, é fundamental considerá-los no âmbito de uma política nacional de assistência farmacêutica, inserida numa política de saúde global. Saúde é um bem público e, portanto, um direito de todos, como reconhece a Constituição brasileira.
O diagnóstico da doença que deixa a sociedade à mercê dos falsificadores é simples e já motivou até CPI no Congresso, mostrando as contradições entre os interesses econômicos predominantes e uma política de saúde que atenda adequadamente a população. O Brasil é o quarto mercado consumidor de medicamentos no mundo, atrás apenas de EUA, França e Itália, e representa 4% do faturamento mundial da indústria farmacêutica. Entre 1992 e 1996, o preço dos medicamentos no Brasil subiu 178% -um aumento real de 30% ao ano, com elevação de 145% no lucro da indústria no período.
A busca indiscriminada do lucro relega a segundo plano os interesses coletivos. É nesse contexto que avança a indústria criminosa da falsificação e da produção de remédios sem eficácia comprovada.
Quaisquer dispositivos que visem adequar as atividades comerciais do setor aos interesses da sociedade são combatidos e desrespeitados, como o decreto 793/93, que obriga o uso da denominação genérica (nome do princípio ativo) nas embalagens dos medicamentos, ao lado do nome fantasia.
Para mudar essa realidade, é necessário colocar em prática os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), respeitando as diretrizes estabelecidas na Constituição. São urgentes a descentralização do sistema e a adoção de um plano de atenção integral à saúde, com prioridade para as ações preventivas e sem prejuízo das ações assistenciais, com participação e controle social. Deve haver universalidade de acesso a todos os níveis de assistência, com preservação da autonomia do usuário.
Para combater a fraude, é preciso recadastrar os laboratórios produtores, verificar seus procedimentos técnicos e sua adequação às especificações legais; apurar as irregularidades existentes no setor farmacêutico; e fazer cumprir o decreto 793/93, com fiscalização rigorosa da Vigilância Sanitária, para impedir que a lei seja burlada.
Além disso, é imprescindível o cumprimento da lei que exige a presença do farmacêutico nos estabelecimentos de produção, distribuição e dispensação de remédios durante todo seu período de funcionamento. O comércio de medicamentos deve ser redefinido com base no substitutivo Ivan Valente, em tramitação no Congresso, que conceitua farmácia como estabelecimento de saúde e prevê mecanismos de controle social para a autorização de abertura.
Finalmente, é necessária uma atuação concreta e rápida do Judiciário no julgamento e na punição dos responsáveis pelas fraudes.


Gilda Almeida de Souza, 52, é presidente da Fenafar (Federação Nacional dos Farmacêuticos) e diretora do Sindicato dos Farmacêuticos no Estado de São Paulo



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