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Falta luz nos corredores, e os elevadores já deixaram de funcionar. Sem ter para onde ir e sob risco de despejo, costureira de 82 anos mora com o filho doente no oitava andar de um prédio desativado em São Paulo. Os dois - e a família do zelador - são os únicos habitantes do edifício, que possui 36 apartamentos
A última moradora
ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local
Passava das 13h quando a costureira Ana Ramos Pinto, 82, saiu de
casa, no centro de São Paulo, com
o propósito de caminhar pelo menos 2,5 quilômetros.
Tinha como destino a rua Maranhão, em Higienópolis, bairro nobre da cidade.
Corpo magro e um tanto arqueado, cabelos muito brancos, os passos surpreendentemente rápidos
para uma octogenária, Anita -é
assim que costumam chamá-la-
percorreu o trajeto sem descansar
e parou diante de um prédio.
Aproximou-se da guarita.
- O presidente Fernando Henrique mora aqui?
- Mora, por quê?
Tirou da bolsa uma carta.
- Pode entregar para o homem?
O vigia respondeu que sim, e
Anita foi embora.
A cena se deu há três anos. Mas o
pedido de socorro que a carta levava para FHC continua valendo.
A costureira vive no apartamento 81 de um edifício desativado. De
acordo com moradores das redondezas, os donos do imóvel tentam vendê-lo desde 1992.
Um a um, os ocupantes dos outros 35 apartamentos, distribuídos
por dez andares, deixaram o prédio. Também saíram os comerciantes que alugavam as seis lojas
do térreo. Só Anita ficou. Ela e o
filho único, Milton, um ex-contador de 40 anos, que há 15 sofre de
distúrbios mentais e se comporta
como criança.
Os proprietários do edifício permitem que a costureira continue
no oitavo andar enquanto procura
uma nova casa. Não lhe cobram
mais o aluguel. Tampouco lhe cortaram a luz, o gás e a água. Mas
desligaram os dois elevadores e a
energia elétrica dos corredores.
No primeiro andar, o zelador
mora com a mulher e um par de
filhas. São agora os únicos vizinhos de Anita, que recebe aposentadoria de R$ 130.
Por mais que vasculhe, ainda
não encontrou "um cantinho digno" para ir. Tudo "é muito caro". O tempo da costureira, porém, está se esgotando.
No último dia 21, um decreto do
então governador em exercício,
Geraldo Alckmin, determinou a
desapropriação do prédio pela
Companhia de Desenvolvimento
Habitacional e Urbano, subordinada à Secretaria da Habitação.
Alegou "interesse social". A
idéia da CDHU é reformar o imóvel, deixando-o com 76 apartamentos. Depois, planeja usá-lo para abrigar famílias retiradas de
cortiços.
Calcula que as obras irão demorar de 12 a 18 meses e custarão R$
570 mil. Não divulga, por ora,
quanto pretende oferecer pelo edifício durante as negociações com
os proprietários.
Até o fim de novembro, o governo dará entrada na ação desapropriatória, mas só tomará posse do
prédio quando a Justiça autorizar.
Anita sabe que, mais dia, menos
dia, terá de sair. "Ninguém me
pressiona. Os donos são 100% e já
me aturaram bastante. Acontece
que a coisa está complicando, o
tempo passa e continuo sem achar
uma saída."
No apartamento de dois dormitórios, a costureira mantém, "há
anos", tudo pronto "para a mudança que nunca chega". As roupas estão dentro de malas. As louças, embrulhadas. E os móveis,
desmontados.
Emerson e Piquet
Um estudo de 1994, encomendado pela prefeitura, mostra que o
edifício vazio se localiza, ironicamente, numa área com graves
problemas de moradia: a da Administração Regional da Sé.
Lá se concentra o maior número
de cortiços paulistanos. São 4.441
(quase 19% dos 23.688 que existem
na cidade) e abrigam 119.255 pessoas. O levantamento -o mais
atualizado do gênero- informa
que a região da Mooca fica em segundo lugar, com 2.132 cortiços.
O prédio de Anita, portanto, é
uma tentação permanente para os
sem-teto. Projetado durante a década de 30 pelo arquiteto Plínio
Botelho, ainda guarda um pouco
da imponência original -sacadas
largas, pé-direito alto, paredes de
mármore. Imperam, no entanto,
as marcas do abandono: manchas
de infiltração, vidros quebrados,
ferrugem e pichações.
O taxista Delfino Pinheiro Sanches, há 22 anos trabalhando nas
imediações, conta que uma churrascaria já ocupou o térreo do edifício. "Era muito badalada. Em
época de Fórmula 1, os pilotos jantavam ali. Cheguei a ver o Emerson, o Piquet e o Niki Lauda."
Parte da vizinhança comenta
que um grupo de desabrigados
tentou invadir o prédio em outubro, às vésperas do primeiro turno
das eleições. Outros negam, garantem que é tudo boato.
Pelo sim, pelo não, tão logo o governo decretou a desapropriação,
a CDHU solicitou à Polícia Militar
que tomasse conta do edifício.
Integrantes do 13º Batalhão revezam-se, dia e noite, na porta do
imóvel, em turnos de oito horas.
O tenente-coronel Flamarion
Ruiz, que comanda os soldados, se
diz preocupado com a costureira.
"Se me mandarem retirá-la do
apartamento, terei de ser profissional e cumprir a ordem. Mas tremo só de pensar na hipótese. A situação de dona Anita nos entristece. Ela vive um drama social."
Os habitantes das imediações se
preocupam mais é com o destino
que o governo pretende dar para o
prédio. Sem meias palavras, destilam preconceitos. "Sabe o que
acontecerá?", pergunta um comerciante. "Vão encher o edifício
de maloqueiros. Gente de cortiço,
que pendura calcinha na janela e
atira modess cá pra baixo."
Vela e lanterna
Faz 15 anos que a costureira mora no apartamento 81. Há três, não
paga o aluguel nem a água, embora continue respondendo pelas
contas de luz e gás.
Enfrenta uma rotina cansativa.
Sem telefone ou interfone, desce
as escadarias sempre que necessita
de algo. "Umas quatro vezes por
dia, encaro a escuridão dos degraus." Dentro da bolsa, nunca se
esquece de levar um toco de vela
ou uma lanterna, que a ajudam na
empreitada.
Outro problema é a poeira. Apesar de uma "dor teimosa" nas
costas, Anita limpa os corredores
do prédio quinzenalmente. "Varro e passo pano seco. Os donos dizem que não precisa. Mas é minha
casa, não posso largar suja."
Viúva, tem dois irmãos vivos e
mais de 15 sobrinhos. "Só que
ninguém visita ninguém." Possui,
ainda, uma neta -que não vê há
"um par de tempo". "Ela mora
com a ex-mulher do Milton."
Para engordar a aposentadoria
miúda, a costureira trabalha duas
vezes por semana em um hotel na
avenida Ipiranga. "Cuido das cortinas, fronhas, toalhas e lençóis."
Recebe salário de R$ 400 e uma
cesta básica. "Não dá para nada.
Gasto muito com remédios."
Costuma jogar R$ 0,80 na loteria
federal. "Persigo o touro e o leão.
Um dia, acerto." Desconfiada,
não se deixa fotografar nem permitiu que a reportagem da Folha
entrasse em seu apartamento.
"Tenho receio." Mas não consegue explicar do quê.
O zelador e os donos do prédio
são mais esquivos ainda. Fogem
de entrevistas e não querem que o
jornal publique seus nomes.
"Uma senhora morando naquele edifício? Não sabia", espanta-se
o vice-presidente da CDHU, Lázaro Piunti. "Mas, agora que vocês
nos avisaram, iremos considerar o
assunto durante o processo de desapropriação. Vamos nos empenhar e resolver o problema da melhor maneira possível."
A costureira faz questão de frisar
que se sente mal em morar de graça. "Quero pagar aluguel, desde
que não devore toda a minha renda." Ressalta, também, que não
gostaria de viver em bairros afastados ("ficaria longe do trabalho"). E que nunca se mudaria para um lugar sem gás de rua. "Bujão é um perigo. O Milton pode
mexer e botar a casa pelos ares."
Foi o que explicou na carta para
FHC. "Não sei se o presidente leu,
mas me mandaram um telegrama
de Brasília." O papelucho dizia,
laconicamente: "Informo pleito
encaminhado Ministério da Fazenda". Anita não entendeu direito. "Achei que deveria procurar o
ministério em São Paulo."
Procurou. "Cheguei à portaria,
a moça perguntou: qual a seção?
Mostrei o telegrama. Ela conferiu
e falou: no papel não identificam a
seção. Me sugeriu, então, que ligasse para o homem, o Fernando
Henrique em pessoa. Fiquei indignada: olha, mocinha, não adianta
telefonar. Você acha que quem
atender vai passar a ligação?"
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