São Paulo, domingo, 15 de novembro de 1998

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Falta luz nos corredores, e os elevadores já deixaram de funcionar. Sem ter para onde ir e sob risco de despejo, costureira de 82 anos mora com o filho doente no oitava andar de um prédio desativado em São Paulo. Os dois - e a família do zelador - são os únicos habitantes do edifício, que possui 36 apartamentos
A última moradora

ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local

Passava das 13h quando a costureira Ana Ramos Pinto, 82, saiu de casa, no centro de São Paulo, com o propósito de caminhar pelo menos 2,5 quilômetros.
Tinha como destino a rua Maranhão, em Higienópolis, bairro nobre da cidade.
Corpo magro e um tanto arqueado, cabelos muito brancos, os passos surpreendentemente rápidos para uma octogenária, Anita -é assim que costumam chamá-la- percorreu o trajeto sem descansar e parou diante de um prédio. Aproximou-se da guarita.
- O presidente Fernando Henrique mora aqui?
- Mora, por quê?
Tirou da bolsa uma carta.
- Pode entregar para o homem?
O vigia respondeu que sim, e Anita foi embora.
A cena se deu há três anos. Mas o pedido de socorro que a carta levava para FHC continua valendo.
A costureira vive no apartamento 81 de um edifício desativado. De acordo com moradores das redondezas, os donos do imóvel tentam vendê-lo desde 1992.
Um a um, os ocupantes dos outros 35 apartamentos, distribuídos por dez andares, deixaram o prédio. Também saíram os comerciantes que alugavam as seis lojas do térreo. Só Anita ficou. Ela e o filho único, Milton, um ex-contador de 40 anos, que há 15 sofre de distúrbios mentais e se comporta como criança.
Os proprietários do edifício permitem que a costureira continue no oitavo andar enquanto procura uma nova casa. Não lhe cobram mais o aluguel. Tampouco lhe cortaram a luz, o gás e a água. Mas desligaram os dois elevadores e a energia elétrica dos corredores.
No primeiro andar, o zelador mora com a mulher e um par de filhas. São agora os únicos vizinhos de Anita, que recebe aposentadoria de R$ 130.
Por mais que vasculhe, ainda não encontrou "um cantinho digno" para ir. Tudo "é muito caro". O tempo da costureira, porém, está se esgotando.
No último dia 21, um decreto do então governador em exercício, Geraldo Alckmin, determinou a desapropriação do prédio pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, subordinada à Secretaria da Habitação.
Alegou "interesse social". A idéia da CDHU é reformar o imóvel, deixando-o com 76 apartamentos. Depois, planeja usá-lo para abrigar famílias retiradas de cortiços.
Calcula que as obras irão demorar de 12 a 18 meses e custarão R$ 570 mil. Não divulga, por ora, quanto pretende oferecer pelo edifício durante as negociações com os proprietários.
Até o fim de novembro, o governo dará entrada na ação desapropriatória, mas só tomará posse do prédio quando a Justiça autorizar.
Anita sabe que, mais dia, menos dia, terá de sair. "Ninguém me pressiona. Os donos são 100% e já me aturaram bastante. Acontece que a coisa está complicando, o tempo passa e continuo sem achar uma saída."
No apartamento de dois dormitórios, a costureira mantém, "há anos", tudo pronto "para a mudança que nunca chega". As roupas estão dentro de malas. As louças, embrulhadas. E os móveis, desmontados.

Emerson e Piquet
Um estudo de 1994, encomendado pela prefeitura, mostra que o edifício vazio se localiza, ironicamente, numa área com graves problemas de moradia: a da Administração Regional da Sé.
Lá se concentra o maior número de cortiços paulistanos. São 4.441 (quase 19% dos 23.688 que existem na cidade) e abrigam 119.255 pessoas. O levantamento -o mais atualizado do gênero- informa que a região da Mooca fica em segundo lugar, com 2.132 cortiços.
O prédio de Anita, portanto, é uma tentação permanente para os sem-teto. Projetado durante a década de 30 pelo arquiteto Plínio Botelho, ainda guarda um pouco da imponência original -sacadas largas, pé-direito alto, paredes de mármore. Imperam, no entanto, as marcas do abandono: manchas de infiltração, vidros quebrados, ferrugem e pichações.
O taxista Delfino Pinheiro Sanches, há 22 anos trabalhando nas imediações, conta que uma churrascaria já ocupou o térreo do edifício. "Era muito badalada. Em época de Fórmula 1, os pilotos jantavam ali. Cheguei a ver o Emerson, o Piquet e o Niki Lauda."
Parte da vizinhança comenta que um grupo de desabrigados tentou invadir o prédio em outubro, às vésperas do primeiro turno das eleições. Outros negam, garantem que é tudo boato.
Pelo sim, pelo não, tão logo o governo decretou a desapropriação, a CDHU solicitou à Polícia Militar que tomasse conta do edifício.
Integrantes do 13º Batalhão revezam-se, dia e noite, na porta do imóvel, em turnos de oito horas.
O tenente-coronel Flamarion Ruiz, que comanda os soldados, se diz preocupado com a costureira. "Se me mandarem retirá-la do apartamento, terei de ser profissional e cumprir a ordem. Mas tremo só de pensar na hipótese. A situação de dona Anita nos entristece. Ela vive um drama social."
Os habitantes das imediações se preocupam mais é com o destino que o governo pretende dar para o prédio. Sem meias palavras, destilam preconceitos. "Sabe o que acontecerá?", pergunta um comerciante. "Vão encher o edifício de maloqueiros. Gente de cortiço, que pendura calcinha na janela e atira modess cá pra baixo."

Vela e lanterna
Faz 15 anos que a costureira mora no apartamento 81. Há três, não paga o aluguel nem a água, embora continue respondendo pelas contas de luz e gás.
Enfrenta uma rotina cansativa. Sem telefone ou interfone, desce as escadarias sempre que necessita de algo. "Umas quatro vezes por dia, encaro a escuridão dos degraus." Dentro da bolsa, nunca se esquece de levar um toco de vela ou uma lanterna, que a ajudam na empreitada.
Outro problema é a poeira. Apesar de uma "dor teimosa" nas costas, Anita limpa os corredores do prédio quinzenalmente. "Varro e passo pano seco. Os donos dizem que não precisa. Mas é minha casa, não posso largar suja."
Viúva, tem dois irmãos vivos e mais de 15 sobrinhos. "Só que ninguém visita ninguém." Possui, ainda, uma neta -que não vê há "um par de tempo". "Ela mora com a ex-mulher do Milton."
Para engordar a aposentadoria miúda, a costureira trabalha duas vezes por semana em um hotel na avenida Ipiranga. "Cuido das cortinas, fronhas, toalhas e lençóis." Recebe salário de R$ 400 e uma cesta básica. "Não dá para nada. Gasto muito com remédios."
Costuma jogar R$ 0,80 na loteria federal. "Persigo o touro e o leão. Um dia, acerto." Desconfiada, não se deixa fotografar nem permitiu que a reportagem da Folha entrasse em seu apartamento. "Tenho receio." Mas não consegue explicar do quê.
O zelador e os donos do prédio são mais esquivos ainda. Fogem de entrevistas e não querem que o jornal publique seus nomes.
"Uma senhora morando naquele edifício? Não sabia", espanta-se o vice-presidente da CDHU, Lázaro Piunti. "Mas, agora que vocês nos avisaram, iremos considerar o assunto durante o processo de desapropriação. Vamos nos empenhar e resolver o problema da melhor maneira possível."
A costureira faz questão de frisar que se sente mal em morar de graça. "Quero pagar aluguel, desde que não devore toda a minha renda." Ressalta, também, que não gostaria de viver em bairros afastados ("ficaria longe do trabalho"). E que nunca se mudaria para um lugar sem gás de rua. "Bujão é um perigo. O Milton pode mexer e botar a casa pelos ares."
Foi o que explicou na carta para FHC. "Não sei se o presidente leu, mas me mandaram um telegrama de Brasília." O papelucho dizia, laconicamente: "Informo pleito encaminhado Ministério da Fazenda". Anita não entendeu direito. "Achei que deveria procurar o ministério em São Paulo."
Procurou. "Cheguei à portaria, a moça perguntou: qual a seção? Mostrei o telegrama. Ela conferiu e falou: no papel não identificam a seção. Me sugeriu, então, que ligasse para o homem, o Fernando Henrique em pessoa. Fiquei indignada: olha, mocinha, não adianta telefonar. Você acha que quem atender vai passar a ligação?"



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