São Paulo, terça-feira, 16 de janeiro de 2001

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MARILENE FELINTO

Morrer em público

O governador de São Paulo parece que vai morrer. Dá essa impressão, ele que não hesita em se expor publicamente e a sua doença, combalido, o cabelo ralo, o andar trôpego e lento, o corpo curvado e castigado pelo câncer que já lhe extirpou a bexiga e o reto, e agora lhe confunde a mente atrapalhada por desordens de raciocínio.
Qualquer que seja o diagnóstico, Mário Covas não se aquieta, não repousa, não vai se resignar, mofino, na cama. Será coragem a atitude do governador ou excessivo apego à vida? Será medo de morrer? Então ele se agarra ao cargo, ao povo, ao trabalho, para se sentir útil e vivo, para não ir.
Para não ir para onde? Por que resistimos tanto à idéia de morrer? O drama público do governador faz certo espectador comovido pensar -por um minuto que seja- na morte e na batalha vã contra ela.
As notícias da doença do governador misturam-se, no jornal e na TV, com as notas sobre os avanços da ciência, da pesquisa genética que sai inventando macacos, mistura de gente com água-viva. O macaco inventado tem lábios de gente, boca de gente, ou é impressão de quem olha? Tudo é absurdo neste campo dos mistérios da morte e das tentativas de atingir a imortalidade.
Por vezes, é como se a vida real (incluindo a ciência) não passasse de literatura. Morre-se menos de uma pneumonia do que de uma idéia grandiosa e útil, diz Brás Cubas, o protagonista de Machado de Assis no genial "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881). Menos da doença física do que da paixão do espírito.
"A vida estrebuchava no meu peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, ou descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma. (...) Morri de uma pneumonia; mas, se lhe disser que foi menos a pneumonia do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia (...)", conta um Brás Cubas já defunto, narrando sua própria morte.
Literatura e cinema: "Hoje é um belo dia para morrer", diz o personagem do filme "Linha Mortal" ("Flatliners", 1990), um estudante de medicina que junta um grupo de amigos para experimentarem como é morrer. Cada um "mata" o outro por alguns segundos à base de drogas médicas para depois ressuscitá-lo com massagens cardíacas. É uma das poucas vezes em que a ficção apresenta uma visão positiva e instigante da morte.
Mas por que resistir inutilmente ao inevitável? Não é ela, a morte, que, pondo termo à vida, arredonda-a de modo a revelá-la em sua integridade e manifesta desse modo o sentido último da mesma? Assim diz a filosofia. E dada a nossa capacidade diminuída de ter esperança, e dada a nossa solidão interior e dadas as nossas perdas irreparáveis vida afora, não seria melhor, como os estudantes de medicina do filme, aceitar filosoficamente a morte como um genial despenhar-se no nada?
Todos entendemos a briga do governador contra a morte. Todos torcemos por ele como se fosse por nós mesmos. Todos queremos viver. Brás Cubas também queria. No seu delírio entre a vida e a morte, uma visão fantasmagórica o reprime por isso:
"Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e, se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver."

E-mail: mfelinto@uol.com.br



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