|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
Torta & Revolução
Manifestante "contra capitalismo" joga torta no rosto de Berzoini. Brasil, 13.fev.2004
O novo movimento contra o capitalismo teve origem rigorosamente histórica. A
idéia surgiu da frase atribuída a
Maria Antonieta, rainha da França, que perguntou, a propósito da
situação dos pobres em seu país:
"Se eles não têm pão, por que não
comem bolos?" Não chegou a obter resposta -foi guilhotinada-,
mas o episódio atravessou os séculos e, mediante pequena modificação (os bolos, secos demais, e portanto inadequados, foram substituídos por tortas), acabou servindo de inspiração para a prática revolucionária.
Que não é uma prática simples,
como logo o movimento descobriu. Em primeiro lugar, foi preciso aprender a fazer tortas. Receitas estão disponíveis em livros de
culinária, mas trata-se, como facilmente se percebe, de literatura
burguesa, destinada a satisfazer o
hedonismo das classes dominantes. De modo que tornou-se necessário elaborar um "Manual do
Doceiro Revolucionário". A partir
daí, passou-se à praxis propriamente dita, que incluía não apenas a confecção das tortas, mas
também o treinamento visando a
usá-las como arma contra o capitalismo. Embora o rosto das pessoas esteja normalmente exposto,
não se trata de alvo fácil. É preciso
fazer com que coincida a superfície da torta com a superfície facial
do figurão visado, manobra que
exige precisão, rapidez, desenvoltura, mas que é, de qualquer maneira, superior ao clássico arremesso de ovos, no qual a porcentagem de erros pode chegar a 50%,
ou mais, o que é, no mínimo, desmoralizante, sem falar no desperdício de ovos (todos com baixo
teor de colesterol e portanto mais
caros).
Os primeiros ataques foram
muito bem-sucedidos, e renderam
até fotos sensacionais, capazes de
causar inveja aos ativistas do passado e aos produtores das antigas
comédias de pastelão. Mas o êxito
do movimento teve resultados paradoxais. De imediato surgiram
facções. Uma delas preconizava a
manutenção da antiga fórmula,
torta de cerejas. Outra, mais extremista, via as cerejas com suspeição. Não são raros os filmes norte-americanos em que o protagonista toma um martíni com cereja;
não seria isso uma evidência de
associação entre cerejas e capitalismo? Por que não substituir a
torta de cereja pela simples torta
de creme, considerando que o creme, além de aderir melhor, aparece bem nas fotografias?
Esta polêmica ainda está em
curso, mas já há uma terceira, e
mais radical, facção surgindo.
Esta diz que as tortas devem ser
distribuídas aos pobres, que afinal
padecem de crônica carência alimentar. Mas esta posição, denominada pelos radicais de
"desvio Maria Antonieta", está
sendo classificada como mero desvio reformista. Pior: apresenta
uma perigosa semelhança com o
Fome Zero. Semelhança esta que
pode comprometer, para sempre,
o papel da torta como arma
revolucionária.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção
baseado em reportagens publicadas no
jornal.
Texto Anterior: Estudo aponta principais desafios Próximo Texto: Consumo: Engenheiro teve 2 celulares Nokia quebrados em até 1 ano Índice
|