São Paulo, segunda-feira, 16 de fevereiro de 2004

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MOACYR SCLIAR

Torta & Revolução

Manifestante "contra capitalismo" joga torta no rosto de Berzoini. Brasil, 13.fev.2004

O novo movimento contra o capitalismo teve origem rigorosamente histórica. A idéia surgiu da frase atribuída a Maria Antonieta, rainha da França, que perguntou, a propósito da situação dos pobres em seu país: "Se eles não têm pão, por que não comem bolos?" Não chegou a obter resposta -foi guilhotinada-, mas o episódio atravessou os séculos e, mediante pequena modificação (os bolos, secos demais, e portanto inadequados, foram substituídos por tortas), acabou servindo de inspiração para a prática revolucionária.
Que não é uma prática simples, como logo o movimento descobriu. Em primeiro lugar, foi preciso aprender a fazer tortas. Receitas estão disponíveis em livros de culinária, mas trata-se, como facilmente se percebe, de literatura burguesa, destinada a satisfazer o hedonismo das classes dominantes. De modo que tornou-se necessário elaborar um "Manual do Doceiro Revolucionário". A partir daí, passou-se à praxis propriamente dita, que incluía não apenas a confecção das tortas, mas também o treinamento visando a usá-las como arma contra o capitalismo. Embora o rosto das pessoas esteja normalmente exposto, não se trata de alvo fácil. É preciso fazer com que coincida a superfície da torta com a superfície facial do figurão visado, manobra que exige precisão, rapidez, desenvoltura, mas que é, de qualquer maneira, superior ao clássico arremesso de ovos, no qual a porcentagem de erros pode chegar a 50%, ou mais, o que é, no mínimo, desmoralizante, sem falar no desperdício de ovos (todos com baixo teor de colesterol e portanto mais caros).
Os primeiros ataques foram muito bem-sucedidos, e renderam até fotos sensacionais, capazes de causar inveja aos ativistas do passado e aos produtores das antigas comédias de pastelão. Mas o êxito do movimento teve resultados paradoxais. De imediato surgiram facções. Uma delas preconizava a manutenção da antiga fórmula, torta de cerejas. Outra, mais extremista, via as cerejas com suspeição. Não são raros os filmes norte-americanos em que o protagonista toma um martíni com cereja; não seria isso uma evidência de associação entre cerejas e capitalismo? Por que não substituir a torta de cereja pela simples torta de creme, considerando que o creme, além de aderir melhor, aparece bem nas fotografias?
Esta polêmica ainda está em curso, mas já há uma terceira, e mais radical, facção surgindo. Esta diz que as tortas devem ser distribuídas aos pobres, que afinal padecem de crônica carência alimentar. Mas esta posição, denominada pelos radicais de "desvio Maria Antonieta", está sendo classificada como mero desvio reformista. Pior: apresenta uma perigosa semelhança com o Fome Zero. Semelhança esta que pode comprometer, para sempre, o papel da torta como arma revolucionária.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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