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MOACYR SCLIAR
O sonho aéreo
Ainda na infância, seus super-heróis prediletos serão aqueles que podem voar, como o Superman e Peter Pan
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Passa bem a brasileira que deu à luz a bordo de um avião no Chile. Está internada em uma clínica em Santiago, segundo o diário chileno "El Mercurio". A filha nasceu durante o vôo da LAN, no trecho
entre a Ilha de Páscoa e Santiago. A passageira viajava da Austrália para o Rio de
Janeiro. No ar, começou a se sentir mal e
iniciou o trabalho de parto. Ela contou
com o auxílio de uma ginecologista. A jovem mãe não quis falar com a imprensa e
pediu para não ser perturbada. Segundo
a companhia aérea, ela embarcou com
sete meses e meio de gestação, dentro do
tempo de gravidez permitido.
Folha de S. Paulo
DEZ COISAS podem ser previstas a respeito da menina que
nasceu em pleno vôo:
1 - Durante algum tempo, anos talvez, ela será famosa. Onde aparecer,
no shopping, na escola, no clube,
pessoas apontarão para ela e dirão:
"Esta é a menina que nasceu no ar";
2 - Por causa disso, uma brincadeira surgirá inevitavelmente. Na escola, as colegas dirão, a todo momento:
"Você está me parecendo meio aérea, hoje";
3 - Ainda na infância, seus super-heróis prediletos serão aqueles que
podem voar, como o Superman e Peter Pan. Já o vulto histórico que mais
admirará será Santos Dumont;
4 - Ela jamais terá medo de viajar
de avião. Pelo contrário, cada vez
que entrar numa aeronave, se sentirá em um lugar familiar;
5 - Será com grande emoção que
visitará (a convite da companhia aérea) o avião em que nasceu, que será
rebatizado com seu nome e no qual
ela sempre terá um lugar reservado;
6 - Todos esperarão que ela escolha uma profissão relacionada com
seu nascimento: comissária de bordo ou mesmo comandante de aeronave. Mas, e exatamente por causa
desta insistência, ela se recusará a isto. E as pessoas serão obrigadas a reconhecer que, uma pessoa nascida em pleno vôo, seguramente deve ter
um temperamento singular.
7 - Na adolescência ela terá como
namorado um rapaz talentoso, escritor nas horas vagas. E este rapaz
escreverá sobre ela uma estranha
história, sobre o ciúme que sente o
anjo da guarda da menina que nasceu durante o vôo. Ganhará um prêmio num concurso literário, mas ela,
irritada, terminará o namoro;
8 - Seu caso também inspirará um
famoso psicólogo. Ele elaborará um
interessante trabalho em que falará
de Ícaro, aquele personagem mitológico cujo sonho era voar; mostrará
que, de certa maneira, nascer a bordo de um avião implica uma satisfação congênita deste arcaico desejo.
A obra provocará alguma discussão,
mas, como dirá um conhecido resenhista, não chegará a decolar;
9 - Com o tempo, a história acabará sendo esquecida. É sempre assim;
as coisas que dão manchete de jornal tem permanência fugaz; a fama
nunca dura muito tempo. Para a
moça nascida a bordo de um avião,
contudo, isto será um alívio;
10 - Mesmo assim ela terá um sonho, um amável sonho que a perseguirá constantemente. Neste sonho
ela se vê, grávida, prestes a embarcar
em um avião que irá do Rio de Janeiro à Austrália. Está grávida de sete
meses e meio e tem certeza de que, a
bordo, dará à luz (certamente haverá alguma ginecologista por perto),
mantendo assim a tradição familiar.
Mas este sonho não se realizará. Por
causa do apagão aéreo, claro. O vôo
atrasará muitas horas e ela acabará
dando à luz em terra firme, numa
maternidade, como todas as mulheres. Sonhos têm hora certa para
ocorrer.
MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas na Folha de São Paulo.
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