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OPINIÃO
Não vou morrer na minha quitinete
MÁRIO BORTOLOTTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A ordem agora é morrer
nas próprias casas. Uma
das frases que mais me marcaram
nas últimas semanas foi justamente a frase dita por Sara Joanna Gould, uma americaninha de
21 anos que tá fazendo intercâmbio no Brasil. Ela falou pra Revista da Folha: "O que me surpreende não é a pobreza, comum na
América Latina, mas sim a riqueza, o número de milionários em
um país como o Brasil".
Sacaram? Vocês que agora estão escondidos em suas casas,
com medo de saírem às ruas pra
tomar uma inocente cerveja ou
pra ir a um cinema depois de um
dia cansativo de trampo e pavor?
Vocês sacaram que isso que vocês
estão passando nesse momento é
rotina nas favelas cariocas? O toque de recolher, o abaixar as portas, o rezar baixinho pra que ninguém ouça. Às vezes tão baixinho
que nem Deus ouve.
E a gente faz de conta que tá
acontecendo longe daqui, num
país distante de alguma fábula de
terror. E agora você tá vendo os
busões incendiados, as estações
de metrô metralhadas, e você tá
dentro do trem fantasma.
E você pergunta pra mim o que
eu penso disso? Eu não sou político, não faço parte de nenhuma
igreja, não sou banqueiro nem
empresário. Não lucro com nenhuma espécie de proibição. Mas
tem gente lucrando, não tem? O
pouco dinheiro que ganho trabalhando é pra pagar as contas e
comprar livros. E você vem perguntar pra mim o que eu acho
disso? Você acha que isso aí é só
uma guerra de polícia e bandido?
Faz a autópsia da situação, brother. Com atitudes meia-boca
não vai acontecer nada de fato.
Não vou gastar meus 1.600 toques
com palavrório empolado. Libera
tudo, meu irmão, divide o bolo, libera as drogas, a pirataria e a putaria, deixa todo mundo trabalhar livremente e ser o dono de
suas próprias vidas.
Oportunidade pra todo mundo
melhorar de vida. Iguala as condições pra batata não assar. Mas
é claro que isso não vai acontecer,
não é? Então não perguntem pra
mim o que acho disso. Nunca perguntem para alguém libertário
como eu o que acho de algo assim.
Você tá com a bunda no inferno e
quer manter a dita refrigerada?
Eu tô em casa, mas prefiro optar
por não morrer aqui. Ainda posso
fazer isso. Vou sair pra tomar
uma cerveja. Se eu ainda tivesse
um pai, arrastava ele comigo.
Meu nome é Mário Bortolotto e
não existe nada de que eu goste
mais do que um pingado e um
pão com manteiga depois de uma
noite de sinuca.
Mário Bortolotto é dramaturgo, diretor
de teatro e ator
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