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São Paulo, segunda-feira, 16 de junho de 2003

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MOACYR SCLIAR

Deus em partículas

Instalação européia reúne 6.500 cientistas de 80 países para procurar a "partícula de Deus". Se tudo sair como o planejado, uma máquina gigante vai liderar a busca pelo Santo Graal da física, um fenômeno sorrateiro conhecido como bóson de Higgs, mas apelidado de "partícula de Deus". Folha Ciência, 10.jun.2003

Tudo saiu como o planejado, e os cientistas finalmente conseguiram encontrar a "partícula de Deus", o que, como se pode imaginar, deu manchetes nos jornais do mundo inteiro.
Em algum lugar do Brasil, um jovem leu essa notícia. Era um jovem de classe média, cujo escasso entusiasmo pela universidade que cursava contrastava com sua imensa ambição. O jovem não queria apenas ser alguém na vida. Ele queria deixar no mundo a sua marca, mediante, talvez, uma meteórica carreira política. Mas lhe faltavam atributos essenciais para isso. Não tinha as necessárias conexões; não tinha carisma. Não tinha nada que pudesse apresentar como credencial a um possível eleitorado.
Para tudo isso a "partícula de Deus" poderia ser a solução. Ele não tinha dúvidas de que, incorporando a dita partícula a seu organismo (engolindo-a, por exemplo), adquiriria poderes extraordinários. Poderia fazer os milagres clássicos, como aqueles relatados na Bíblia (abertura das águas do mar, transformação da água em vinho). Ou poderia modernizá-los. Deteria a inflação para sempre, valorizaria o real de forma extraordinária (um real valendo cem dólares). Multiplicaria os cargos públicos ao infinito, de modo a contentar todos os aliados e mesmo todos os eleitores. Enfim, usando a mágica da partícula, daria início a uma era de prosperidade sem fim. E ficaria no poder o tempo que quisesse, talvez para sempre.
Não foi difícil convencer o pai, próspero empresário, a lhe pagar uma viagem para a Europa: inventou um curso qualquer na Suíça e para lá viajou. A "partícula de Deus" estava guardada na sede da organização européia de pesquisa nuclear, Cern, perto de Genebra. Alugou um carro e foi até o local, um maciço edifício situado em meio a uma grande floresta. O problema seria passar pela segurança, e ele já estava pensando em como fazê-lo, mas constatou, para sua surpresa, que não havia segurança alguma. Àquela hora, dez da noite, o local estava completamente deserto. Mais: a porta estava aberta. De modo que ele foi entrando. Caminhou por longos corredores e finalmente chegou ao laboratório principal. Ali estava, sobre uma mesa, uma minúscula caixinha, com um rótulo dizendo: "partícula de Deus".
Chegara o grande momento. Ingerindo a partícula (por sugestiva coincidência, havia sobre a mesa uma garrafa de água mineral e um copo), ele se tornaria um novo Todo-Poderoso. Ia fazê-lo, mas hesitou um instante, e esta hesitação foi fatal. Ouviu passos -um cientista que esquecera algo, decerto- e, assustado, enfiou apressadamente a caixinha no bolso, pulou pela janela e saiu numa doida corrida até o carro. Já sentado ao volante, deu-se conta: tinha perdido a caixinha. E nunca mais a acharia.
Voltou ao Brasil, disse aos pais que o curso fora ótimo e retornou à sua vidinha habitual. Mas um pensamento lhe persegue: o que acontecerá se alguém achar a caixinha? Um bandido, por exemplo? Hein, o que acontecerá?
Só Deus sabe.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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