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MOACYR SCLIAR
Deus em partículas
Instalação européia reúne 6.500
cientistas de 80 países para procurar
a "partícula de Deus". Se tudo sair
como o planejado, uma máquina gigante vai liderar a busca pelo Santo
Graal da física, um fenômeno sorrateiro conhecido como bóson de
Higgs, mas apelidado de "partícula
de Deus". Folha Ciência, 10.jun.2003
Tudo saiu como o planejado, e os cientistas finalmente conseguiram encontrar a
"partícula de Deus", o que, como
se pode imaginar, deu manchetes
nos jornais do mundo inteiro.
Em algum lugar do Brasil, um
jovem leu essa notícia. Era um jovem de classe média, cujo escasso
entusiasmo pela universidade
que cursava contrastava com sua
imensa ambição. O jovem não
queria apenas ser alguém na vida. Ele queria deixar no mundo a
sua marca, mediante, talvez, uma
meteórica carreira política. Mas
lhe faltavam atributos essenciais
para isso. Não tinha as necessárias conexões; não tinha carisma.
Não tinha nada que pudesse
apresentar como credencial a um
possível eleitorado.
Para tudo isso a "partícula de
Deus" poderia ser a solução. Ele
não tinha dúvidas de que, incorporando a dita partícula a seu organismo (engolindo-a, por exemplo), adquiriria poderes extraordinários. Poderia fazer os milagres clássicos, como aqueles relatados na Bíblia (abertura das
águas do mar, transformação da
água em vinho). Ou poderia modernizá-los. Deteria a inflação
para sempre, valorizaria o real de
forma extraordinária (um real
valendo cem dólares). Multiplicaria os cargos públicos ao infinito,
de modo a contentar todos os
aliados e mesmo todos os eleitores. Enfim, usando a mágica da
partícula, daria início a uma era
de prosperidade sem fim. E ficaria
no poder o tempo que quisesse,
talvez para sempre.
Não foi difícil convencer o pai,
próspero empresário, a lhe pagar
uma viagem para a Europa: inventou um curso qualquer na
Suíça e para lá viajou. A "partícula de Deus" estava guardada na
sede da organização européia de
pesquisa nuclear, Cern, perto de
Genebra. Alugou um carro e foi
até o local, um maciço edifício situado em meio a uma grande floresta. O problema seria passar pela segurança, e ele já estava pensando em como fazê-lo, mas constatou, para sua surpresa, que não
havia segurança alguma. Àquela
hora, dez da noite, o local estava
completamente deserto. Mais: a
porta estava aberta. De modo que
ele foi entrando. Caminhou por
longos corredores e finalmente
chegou ao laboratório principal.
Ali estava, sobre uma mesa, uma
minúscula caixinha, com um rótulo dizendo: "partícula de Deus".
Chegara o grande momento. Ingerindo a partícula (por sugestiva
coincidência, havia sobre a mesa
uma garrafa de água mineral e
um copo), ele se tornaria um novo
Todo-Poderoso. Ia fazê-lo, mas
hesitou um instante, e esta hesitação foi fatal. Ouviu passos -um
cientista que esquecera algo, decerto- e, assustado, enfiou
apressadamente a caixinha no
bolso, pulou pela janela e saiu numa doida corrida até o carro. Já
sentado ao volante, deu-se conta:
tinha perdido a caixinha. E nunca mais a acharia.
Voltou ao Brasil, disse aos pais
que o curso fora ótimo e retornou
à sua vidinha habitual. Mas um
pensamento lhe persegue: o que
acontecerá se alguém achar a caixinha? Um bandido, por exemplo? Hein, o que acontecerá?
Só Deus sabe.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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