São Paulo, segunda-feira, 16 de junho de 2008

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MOACYR SCLIAR

Arte & roubo


O ladrão, um homem culto, começou a copiar Picasso e, lá pelas tantas, concluiu que era melhor que o espanhol

 Duas gravuras do pintor espanhol Pablo Picasso, uma aquarela do brasileiro Lasar Segall e um quadro do brasileiro Di Cavalcanti, que estavam expostos na Estação Pinacoteca, no centro de São Paulo, foram roubados. Três homens armados invadiram o local, renderam funcionários e levaram os quatro quadros.
Folha Cotidiano, 13 de junho de 2008

QUANDO O CHEFE DA QUADRILHA viu o produto do roubo trazido por seus comandados ficou furioso. Um quadro de Picasso, outro de Di Cavalcanti, um terceiro de Segall, o que fazer com aquilo? Quem iria comprar aquelas obras-primas, cuja posse certamente levaria os receptadores à prisão?
Levem isso daqui, gritou, devolvam para o museu, queimem, façam o que vocês quiserem, mas sumam, pelo amor de Deus. Os três homens saíram, muito desanimados. Na realidade, o problema apontado pelo chefe não tinha lhes ocorrido, mas, obviamente, o homem estava certo: não dava para vender os quadros. E agora? Qual a solução para o problema? Devolver as obras para o museu, queimá-las, como tinha dito o chefe, parecia-lhes um absurdo, depois de todo aquele trabalho, ainda que o roubo houvesse sido relativamente fácil. Discutiram muito tempo e por fim um deles teve uma idéia: E se vendêssemos os quadros como se fossem nossos?
Os outros dois olharam-no surpresos. Mas de fato aquela era uma possibilidade: tudo o que tinham a fazer era apagar o nome dos artistas e dizer que se tratava de cópias feitas por eles próprios, aproveitando a popularidade que os quadros, graças ao roubo, tinham alcançado.
Decisão tomada, cada um deles ficou com um artista. O ladrão dos desenhos de Picasso, exatamente aquele que tinha feito a proposta, era o que tinha mais esperança. Homem relativamente culto, era fã do artista espanhol, cujo espírito inovador admirava muito. Contava com esse entusiasmo para convencer compradores. Assim, tratou de procurar potenciais clientes, contando a história das cópias. E aí teve uma surpresa.
O dono de um restaurante, que era espanhol e tinha várias reproduções de Picasso nas paredes de seu estabelecimento disse que até compraria "O Minotauro", mas achava a cópia mal-feita. Você precisa ser mais cuidadoso, recomendou, e trabalhar com mais afinco, isso aí não convence ninguém. Surpreso, embora, e até divertido, o ladrão viu, contudo, uma espécie de desafio naquilo que o dono do restaurante tinha dito.
Por boas razões. Nos tempos de escola era elogiado pelos professores e pelos colegas por desenhar muito bem. Copiar Picasso era uma coisa que poderia fazer com a maior facilidade. Pôs mãos à obra. Durante semanas copiou Picassos diariamente; o dono do restaurante comprou vários. E de repente sentiu que sua vocação estava voltando. E voltando com todo o vigor. Desenhava com uma inspiração e desenvoltura incríveis. E lá pelas tantas concluiu: era melhor que Picasso. Tinha um talento tal que suas obras poderiam facilmente figurar em museus, não no caráter de imitações, mas como legítimos originais.
Isto envolvia um problema, contudo. Seria bem possível que ladrões -talvez seus companheiros, talvez ele próprio, num momento tresloucado- roubassem os seus quadros.
E, na impossibilidade de vendê-los (porque ele seria então famoso) talvez os queimassem, talvez os copiassem. E isso ele não poderia suportar nunca, nunca.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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