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MOACYR SCLIAR
Arte & roubo
O ladrão, um homem culto, começou a copiar Picasso e,
lá pelas tantas, concluiu que era melhor que o espanhol
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Duas gravuras do pintor espanhol Pablo Picasso, uma aquarela do brasileiro Lasar Segall e um quadro do brasileiro Di
Cavalcanti, que estavam expostos na Estação Pinacoteca, no centro de São Paulo, foram roubados. Três homens armados invadiram o local, renderam funcionários e levaram os quatro quadros.
Folha Cotidiano, 13 de junho de 2008
QUANDO O CHEFE DA QUADRILHA viu o produto do roubo
trazido por seus comandados ficou furioso. Um quadro
de Picasso, outro de Di Cavalcanti,
um terceiro de Segall, o que fazer
com aquilo? Quem iria comprar
aquelas obras-primas, cuja posse
certamente levaria os receptadores
à prisão?
Levem isso daqui, gritou, devolvam
para o museu, queimem, façam o
que vocês quiserem, mas sumam,
pelo amor de Deus. Os três homens
saíram, muito desanimados. Na realidade, o problema apontado pelo
chefe não tinha lhes ocorrido,
mas, obviamente, o homem estava
certo: não dava para vender os quadros. E agora? Qual a solução para o
problema? Devolver as obras para o
museu, queimá-las, como tinha dito
o chefe, parecia-lhes um absurdo,
depois de todo aquele trabalho, ainda que o roubo houvesse sido relativamente fácil. Discutiram muito
tempo e por fim um deles teve uma
idéia: E se vendêssemos os quadros
como se fossem nossos?
Os outros dois olharam-no surpresos. Mas de fato aquela era uma possibilidade: tudo o que tinham a fazer
era apagar o nome dos artistas e dizer que se tratava de cópias feitas
por eles próprios, aproveitando a
popularidade que os quadros, graças
ao roubo, tinham alcançado.
Decisão tomada, cada um deles ficou com um artista. O ladrão dos desenhos de Picasso, exatamente
aquele que tinha feito a proposta,
era o que tinha mais esperança. Homem relativamente culto, era fã do
artista espanhol, cujo espírito inovador admirava muito. Contava com
esse entusiasmo para convencer
compradores. Assim, tratou de procurar potenciais clientes, contando
a história das cópias. E aí teve uma
surpresa.
O dono de um restaurante, que era
espanhol e tinha várias reproduções
de Picasso nas paredes de seu estabelecimento disse que até compraria "O Minotauro", mas achava a cópia mal-feita. Você precisa ser mais
cuidadoso, recomendou, e trabalhar
com mais afinco, isso aí não convence ninguém. Surpreso, embora, e até
divertido, o ladrão viu, contudo,
uma espécie de desafio naquilo que
o dono do restaurante tinha dito.
Por boas razões. Nos tempos de escola era elogiado pelos professores e
pelos colegas por desenhar muito
bem. Copiar Picasso era uma coisa
que poderia fazer com a maior facilidade. Pôs mãos à obra. Durante semanas copiou Picassos diariamente;
o dono do restaurante comprou vários. E de repente sentiu que sua vocação estava voltando. E voltando
com todo o vigor. Desenhava com
uma inspiração e desenvoltura incríveis. E lá pelas tantas concluiu:
era melhor que Picasso. Tinha um
talento tal que suas obras poderiam
facilmente figurar em museus, não
no caráter de imitações, mas como
legítimos originais.
Isto envolvia um problema, contudo. Seria bem possível que ladrões
-talvez seus companheiros, talvez
ele próprio, num momento tresloucado- roubassem os seus quadros.
E, na impossibilidade de vendê-los
(porque ele seria então famoso) talvez os queimassem, talvez os copiassem. E isso ele não poderia suportar nunca, nunca.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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