São Paulo, quinta-feira, 16 de julho de 2009

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PASQUALE CIPRO NETO

Ainda sobre "velharias"...


A mesóclise está quase morta entre nós, mas isso não significa que não se deve ensiná-la ou que é pecado conhecê-la

NA SEMANA PASSADA, motivado por uma questão do recentíssimo vestibular da Unesp, troquei duas palavras sobre o emprego e o valor do pretérito mais-que-perfeito do indicativo. Antes que me esqueça, preciso responder a alguns leitores, que questionaram o emprego dos dois hífenes (ou "hifens", tanto faz) em "mais-que-perfeito". "Mas a reforma não aboliu o hífen desse tipo de palavra composta?", perguntaram vários leitores, ainda confusos com as maravilhas perpetradas pelo superclaro texto do "(Des)Acordo Ortográfico".
Sim, a reforma aboliu o hífen de palavras compostas como "mula sem cabeça", "dia a dia", "pé de moleque" ("doce"), "pai de santo", "pé de galinha" (com o sentido de "ruga") etc., mas ficaram "algumas exceções já consagradas pelo uso" (é assim que está no texto oficial). Um dos compostos dessa lista é justamente "mais-que-perfeito" (nome de um dos nossos pretéritos).
Posto isso, voltemos ao texto da semana passada e a outras indagações de leitores. Levados pela incrível informação de que há quem defenda a sumária eliminação das aulas de língua do pretérito mais-que-perfeito (e de outros "brontossauros", como [!!!] o pronome oblíquo "o", as segundas pessoas ["tu" e "vós"], entre outros), alguns leitores perguntaram se a escola deixou de ensinar fatos da língua "que estão em franco desuso entre nós", mas se veem em textos clássicos e ainda ocorrem no português de Portugal. Um dos leitores citou especificamente a mesóclise, de que o filho nunca ouviu falar na sala de aula.
A mesóclise, de fato, está quase morta entre nós, mas isso não significa que não se deve ensiná-la ou que é pecado conhecê-la. Está quase morta, mas há quem a empregue. Quer um exemplo? Lá vai: "Amor, onde quer que estejamos juntos / Multiplicar-se-ão assuntos de mãos e pés / E desvãos do ser". Sabe quem escreveu isso? Caetano Veloso, na canção "Os Passistas", de 1997.
Como surge a forma "multiplicar-se-ão"? Trata-se da colocação do pronome oblíquo "se" no interior da flexão verbal "multiplicarão", do futuro do presente. O processo é simples: quebra-se a flexão verbal no exato ponto em que termina o infinitivo ("multiplicar", no caso), e aí vai o primeiro hífen. Coloca-se o oblíquo ("se", no caso) e, depois dele, o segundo hífen. Por fim, o que resta da flexão verbal ("ão", no caso). Vamos repetir: "multiplicar" (infinitivo) + "se" (pronome oblíquo) + "ão" (desinência da terceira do plural do futuro do presente do indicativo).
Vamos fazer o teste substituindo o pronome "se" por "o", com a mesma flexão verbal. Suponhamos que se queira substituir "o efeito da medida" por um oblíquo em "Esses fatores multiplicarão o efeito da medida...". Que ocorreria? Vamos lá. O processo inicial é o mesmo, ou seja, quebra-se a flexão verbal no infinitivo ("multiplicar") e, em seguida, coloca-se o pronome ("o", no caso).
Em seguida... Antes, será preciso fazer uma adaptação: o pronome "o" se transforma em "lo", e a forma verbal perde o "r" final (multiplicar + o = multiplicá-lo). Agora basta acrescentar o segundo hífen e a desinência da terceira do plural ("ão"): "Esses fatores multiplicá-lo-ão". É claro que essa forma nos soa um tanto dura -artificial, até. Mas ela existe em certos registros, por isso a escola deve mostrá-la ao aluno, para que ele a compreenda e a use, caso queira.
Em tempo: ninguém é obrigado a usar a mesóclise nesse caso. É perfeitamente possível (e mais palatável) a forma "Esses fatores o multiplicarão" (ou "vão multiplicá-lo").
Estarei em férias por duas semanas. Volto em 6 de agosto. É isso.

inculta@uol.com.br


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