São Paulo, quinta, 16 de julho de 1998

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OPINIÃO
Por um tribunal criminal permanente


FLÁVIA PIOVESAN

Ao longo do nazismo, 16 milhões de pessoas foram encaminhadas a campos de concentração, 11 milhões neles morreram, sendo 6 milhões deles judeus. Negava-se a condição de sujeito de direito a toda e qualquer pessoa que não pertencesse à raça pura ariana.
A Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que simbolizou as atrocidades do Holocausto, originou também a certeza de que a proteção dos direitos humanos não poderia se restringir à jurisdição doméstica de um Estado, mas deveria constituir tema de legítimo interesse da comunidade internacional.
No esforço da reconstrução do valor dos direitos humanos, o pós-guerra propiciou a criação das Nações Unidas em 1945.
Em 1945-46, foi instituído o Tribunal de Nuremberg, com a competência de julgar os crimes cometidos durante a Segunda Guerra Mundial.
Em 1948 foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completa 50 anos no próximo dia 10 de dezembro.
Também em 1948 foi adotada a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, que reafirmou ser o genocídio um crime contra o direito internacional, dispondo que as pessoas acusadas de genocídio serão julgadas pelos tribunais do Estado ou por uma corte penal internacional. Desde 1948, discute-se a criação de um tribunal internacional criminal permanente.
Passados 50 anos, surge a grande oportunidade histórica de criação deste tribunal, o que significará um decisivo avanço para a proteção dos direitos humanos, assegurando o fim da impunidade quando, na ocorrência de crimes contra a humanidade, as instituições nacionais mostram-se falhas ou omissas na realização da justiça.
De 15 de junho até amanhã, em Roma, na Conferência da ONU sobre a criação da Corte Internacional Criminal Permanente, mais de 120 Estados debatem a matéria, buscando consenso sobre a estrutura, competência e procedimentos básicos deste tribunal.
Dentre as questões centrais, destacam-se: a) a definição de crimes de guerra; b) a legitimidade para encaminhar um caso à apreciação do tribunal; c) os poderes de investigação da promotoria; d) a relação do tribunal com o Conselho de Segurança.
Às discussões jurídicas conjugam-se ainda os interesses políticos, particularmente de alguns membros permanentes do Conselho de Segurança (notadamente os EUA e a França), que intentam manter o poder de veto em relação às atividades do futuro tribunal, negando a independência que o tribunal merece ter para investigar, processar e punir crimes contra a humanidade, onde quer que eles ocorram.
Espera-se que o estatuto deste tribunal amplie o conceito tradicional de crimes de guerra, introduzindo o estupro e outras violências sexuais perpetradas durante a guerra como forma de tortura.
Espera-se também que o estatuto assegure o acesso a este tribunal às vítimas e a entidades da sociedade civil e que consolide internacionalmente as garantias processuais necessárias a um julgamento justo, com a observância da independência da promotoria e dos princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal. É essencial ainda que a jurisdição do tribunal não se sujeite ao controle do Conselho de Segurança.
Acima de tantas controvérsias jurídicas, negociações e disputas políticas, há que prevalecer a consciência da responsabilidade histórica da criação de um Tribunal Internacional Criminal Permanente.
Por detrás de tantos debates, há que se lembrar que desde a Segunda Guerra Mundial mais de 250 conflitos eclodiram, deixando mais de 170 milhões de vítimas, que sofreram as mais cruéis violações de direitos humanos e que guardam a esperança de que a justiça um dia seja feita.


Flávia Piovesan, 29, procuradora do Estado e doutora em direito constitucional, é coordenadora do grupo de trabalho de direitos humanos da Procuradoria Geral do Estado (SP), professora de direito constitucional e de direitos humanos da PUC-SP e membro da Comissão de Justiça e Paz



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