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São Paulo, domingo, 16 de novembro de 2003

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TRÂNSITO

Veículos de infratores contumazes somam 60 mil; carros envolvidos em acidentes foram mais autuados do que a média

1% da frota detém 20% das multas em SP

ALENCAR IZIDORO
SIMONE IWASSO
DA REPORTAGEM LOCAL

Eram 11h26 de 14 de janeiro de 1998, mês em que começaram a vigorar as regras do Código de Trânsito Brasileiro. Um Escort passa no semáforo vermelho na rua Cônego Eugênio Leite, na esquina com a rua Artur de Azevedo, em Pinheiros (zona oeste de São Paulo), onde uma mulher tenta atravessar na faixa de pedestres com um carrinho de bebê.
Essa infração, que poderia ter resultado num acidente trágico, foi a multa de número 63 desse veículo no período de dois anos. Até novembro de 1998, ele ainda acumulou 120 multas não pagas no trânsito paulistano -sendo 16 delas por avanço no semáforo vermelho e 46 por excesso de velocidade. Devia mais de R$ 23 mil.
O Escort foi apreendido. Mas hoje, às vésperas de completar seis anos de vigência da lei que trouxe novas punições, com multas mais caras e possibilidade de cassação da carteira de habilitação, os chamados infratores contumazes ainda persistem.
Um levantamento da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), baseado em dados de 2002, aponta que há um grupo que equivale a 1,05% da frota e que é responsável por 19,59% das multas de trânsito na capital paulista. A média, entre eles, é de dez multas para cada veículo no intervalo de 12 meses -enquanto 72,78% dos carros não são flagrados em nenhuma infração e 16,46%, em apenas uma.
Esse contingente de infratores contumazes é formado por aproximadamente 60 mil veículos. É uma minoria, mas supera a frota do Guarujá, no litoral sul de SP.
A tão falada "indústria da multa" não serve como justificativa para esses casos. Um estudo do engenheiro Horácio Augusto Figueira, da Universidade Anhembi Morumbi, aponta que a "indústria da infração" tem mais produtividade: de cada 10 mil situações de ultrapassagem no vermelho e parada em faixa de pedestres, somente uma é flagrada por fiscais e equipamentos eletrônicos.
O perfil do infrator indica que veículos comerciais -motoboys, ônibus, táxis, caminhões-, cujos motoristas ficam mais tempo no trânsito, tendem a desrespeitar as regras mais do que a média. Essa não é, entretanto, a principal razão para existir os contumazes.

Doença social
O comportamento deles é explicado tanto pela sensação de impunidade -de janeiro de 1998 a junho de 2003 somente 19.576 carteiras de habilitação foram cassadas em São Paulo, número correspondente a menos de 0,5% dos condutores paulistanos- como por distração e por uma espécie de doença social.
"Há motoristas com um distúrbio social, com propensão a burlar regras sociais. São sociopatas. Usam os veículos para compensar possíveis frustrações", afirma José Montal, vice-presidente da Abramet (Associação Brasileira de Medicina de Tráfego).
Figueira explica a diferença entre os infratores conscientes e os distraídos. O consciente é aquele que, mesmo sabendo dos riscos, comete a infração. O desligado comete infrações porque esquece as recomendações. "A multa funciona para os dois casos. O consciente fica revoltado, acha um absurdo, mas sabe que está sendo punido, porque pesa no bolso dele. Para os desligados, a multa serve como um alerta", diz.
O problema se agrava quando se trata de um infrator consciente e rico. "Existe aquele motorista que tem dinheiro e não liga se for multado, até mesmo porque não acredita muito na chance de perder a carteira", diz Philip Anthony Gold, consultor do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) sobre questões de tráfego.

Segurança
"O infrator de hoje é a vítima de amanhã." "O acidente é a infração que não deu certo." Essas expressões, que mais parecem slogans de campanhas educativas, já estão comprovadas pelas estatísticas. É por essa razão que os contumazes representam uma ameaça à segurança do trânsito, que deixou 1.370 mortos na cidade de São Paulo em 2002.
Uma pesquisa da CET com base em todos os acidentes fatais de 2000 mostra que os índices de multas perigosas (excesso de velocidade, passagem no semáforo vermelho, trafegar na contramão e conversão proibida) entre os veículos acidentados são 2,2 vezes superiores aos de toda a frota: 27,7% deles tinham sido flagrados nos 12 meses anteriores, contra 12,7% da média paulistana.
Estudo semelhante feito no último mês em Salvador, com base nos acidentes fatais do terceiro trimestre deste ano, aponta para a mesma tendência: 45% tinham histórico de infrações perigosas. A média atingia três multas para cada veículo acidentado. "A irresponsabilidade dos motoristas é agravada pela sensação de impunidade", reforça Cristina Aragon, gerente de educação no trânsito da capital baiana, onde 55% da frota de 480 mil veículos não receberam nenhuma multa nos últimos três anos e apenas 15% acumularam, nesse intervalo de 36 meses, três ou mais multas.
Na família do estudante paulistano S., 24, a quantidade de pontos somada já seria suficiente para suspender a habilitação de todo mundo que mora na casa. No prontuário de sua mãe são 71 pontos. No do pai, 30. A maior parte das multas, porém, foi feita pela irmã dele, de 26 anos -embora os pontos não tenham sido transferidos para a carteira dela.
Ele afirma que a maioria é por uso do celular. Para ele, é uma mistura de displicência, distração e certeza de impunidade. S. diz ainda que não conhece ninguém que já teve a carteira cassada.


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