São Paulo, quinta-feira, 16 de novembro de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

"Um boi vê os homens"


No registro clássico, as formas "posto", "posto que", "suposto" e "suposto que" equivalem a "embora"

"DE TUDO ao meu amor serei atento / Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto / Que mesmo em face do maior encanto / Dele se encante mais meu pensamento..." O leitor certamente identificou o poema de que se extraiu o excerto, não? Trata-se do conhecido e delicado "Soneto de Fidelidade", de Vinicius de Moraes.
Esse poema ilustra bem uma das tantas deficiências do nosso ensino de língua: saímos da escola sem saber ler poesia, achando que basta ler mecanicamente verso por verso, como se cada um deles necessariamente tivesse sentido completo.
Volta e meia a coisa vira um amontoado de palavras sem nexo. É certo que Vinicius deu uma certa forçada de barra ao quebrar a expressão "Antes de tudo" em "De tudo (...) antes", mas não parece razoável satisfazer-se com o sentido que resulta da exata leitura do primeiro verso. Bem, vamos lá: na ordem direta, teríamos algo como "Serei atento ao meu amor antes de tudo, e com tal zelo, e sempre, e tanto que mesmo em face...". Parece que agora a coisa começa a fazer sentido, não?
Você se lembra dos últimos versos do poema de Vinicius? Vamos lá: "Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure". Que valor tem a locução "posto que" no poema? Parece claro que ela equivale a "visto que", "uma vez que", "já que", "porque".
No "Houaiss", esse valor da locução "posto que" aparece como pertencente ao registro informal brasileiro. No registro clássico, as formas "posto", "posto que", "suposto" e "suposto que" têm valor concessivo, ou seja, equivalem a "embora". Já comentei aqui esta passagem, do início de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis: "Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar...".
Nesse excerto machadiano, "suposto" significa "embora". Em outro fragmento do Bruxo do Cosme Velho, encontra-se isto: "Como caráter, fazia-lhe a mãe grandes elogios, e eram fundados, posto fossem de mãe" (de "Ressurreição", citado no "Aurélio"). O sentido de "posto" é o mesmo de "suposto", isto é, "embora" ("...grandes elogios, e eram fundados, embora fossem de mãe").
Antes que alguém imagine que esse uso tenha morrido com os escritores do século 19, é bom lembrar esta passagem do monumental poema "Um Boi Vê os Homens", de Drummond: "Tão delicados (mais que um arbusto) e correm / e correm de um para outro lado, sempre esquecidos / de alguma coisa. Certamente, falta-lhes / não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres / e graves, por vezes. Ah, espantosamente graves, / até sinistros (...)".
Pois bem, caro leitor. Drummond (sim, Drummond, aquele do "Tinha uma pedra no meio do caminho") sabiamente jogava em diversas posições, ou seja, trafegava por muitos territórios da linguagem e da língua -do coloquial ao formal, do popular ao erudito, do clássico ao moderno.
Em "Um Boi...", usa "posto" com o mesmo valor que lhe dá Machado ("posto se apresentem nobres" = "embora se apresentem nobres"). Não resisto à tentação de lembrar que o ensino do idioma não pode privar o estudante do contato com determinadas variedades da língua, especialmente as cultas. É isso.
inculta@uol.com.br


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