São Paulo, segunda, 16 de novembro de 1998

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COTIDIANO IMAGINÁRIO

Lênin sim, Cauby não

MOACYR SCLIAR

Professor mantém sebo de obras marxistas no Rio: livros de Lênin dividem espaço com discos de Cauby Peixoto - Cotidiano, 8.nov.1998

É o último reduto do marxismo-leninismo, diziam os amigos, e isso para ele era motivo de orgulho: realmente, a pequena livraria tinha um enorme estoque das obras de Marx, Engels, Lênin, Stalin, Mao. Munição para muitas revoluções, segundo a sua visão.
O problema é que essa munição não saía do paiol. Ninguém comprava os livros. Coisa que o deixava revoltado -é um mundo de alienados, este nosso- mas, de certa forma, satisfeito: no fundo, não queria separar-se daquelas obras que evocavam a sua vida de militante.
Claro que precisava viver, mas isso resolvia de outra maneira: havia, no pequeno recinto, uma seção de CDs populares, e para aquilo sim, havia procura. Cauby Peixoto, por exemplo, vendia como pão quente.
Tudo mudou quando o rapaz começou a frequentar a livraria. Era um rapaz magro, de óculos, que andava sempre de impermeável, por mais calor que fizesse. Vinha, não dizia nada, ficava folheando os livros. Depois ia embora sem dizer nada. Não demorou muito para que ele fizesse o diagnóstico: o jovem estava surrupiando a literatura revolucionária. Dedução simples: os livros não se vendiam, mas estavam sumindo. De outra parte, não eram muitos os frequentadores do sebo. E sobretudo, não eram muitos os que vinham ali de capa -cuja finalidade era óbvia.
Depois de muito hesitar, acabou interpelando o rapaz. Tentou fazer a coisa com jeito, para não ofendê-lo. Para sua surpresa, o garoto não apenas admitiu os furtos, como os justificou:
-Estou apenas procedendo a uma divisão da riqueza intelectual que você concentrava aqui no sebo, como outros concentram a renda. Ou você não sabe que, como diz Proudhon, a propriedade privada é um roubo?
O dono da livraria teve de concordar. Exigiu apenas que o jovem levasse só um livro de cada vez, para não liquidar o acervo. E esse acordo funcionou muito bem. Até o dia em que o rapaz, vítima de súbita tentação, furtou um CD do Cauby. O homem então expulsou-o, indignado. Roubar Lênin tudo bem, era um ato revolucionário. Mas roubar o Cauby nada tinha de progressista. E, sem discos de Cauby, do que iria ele viver?


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal




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