São Paulo, quarta-feira, 17 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

URBANIDADE

Vidas no papel

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

O bibliófilo José Mindlin descobriu, em uma casa em Pinheiros sem nenhuma placa ou letreiro, um tesouro japonês. É uma coleção de folhas de papel delicadíssimas, cujas fibras são extraídas da casca de amoreiras. O demorado processo artesanal -as fibras são banhadas em águas de geleiras, passando por várias lavagens de diferentes temperaturas- é transmitido há séculos entre famílias japonesas.
Graças a essa descoberta, Mindlin consegue o material ideal para restaurar e preservar livros antigos de sua biblioteca. Aquela discreta casa é o único lugar da América Latina a receber esses papéis, conhecidos como washi, cuja produção e distribuição são controladas por confrarias familiares, que agem como se guardassem um segredo. O modo como as fibras saem das águas das geleiras e desembocam em São Paulo já mereceria um livro. O personagem central dessa história se chama Cecília Suzuki, brasileira filha de imigrantes.
Formada em arquitetura, Cecília casou-se e decidiu que a principal atividade de sua vida seria a dedicação à família. Invariavelmente, acompanhava o marido, Hisashi Suzuki, professor de oftalmologia da USP, a todos os congressos para ajudá-lo a se orientar nas viagens. "Meu marido é, além de professor, inventor. Não vive neste mundo."
Acomodara-se à condição de coadjuvante, que imaginava ser um destino: na sua casa, nos tempos de criança e adolescente, sempre ajudara a cuidar dos mais velhos. Até que teve um estalo. As fotos exibidas nos congressos de oftalmologia infundiram em Cecília a idéia de experimentar fazer gravuras usando como temática os olhos. Enxergou uma nova possibilidade: o prazer das artes plásticas.
À procura dos melhores materiais para suas gravuras, soube dos washis, caros e difíceis de encontrar mesmo no Japão, onde os viu e se encantou com o seu ritual de fabricação. Ao voltar, ela, sem saber, estava sendo escolhida. Durante nove meses, a cooperativa coletou dados sobre Cecília e lhe ofereceu, então, a oportunidade de ser a única representante do produto na América Latina. "Jamais pensei em trabalhar com isso." A proposta jogou-a no mundo reservado das pessoas que, com suas meticulosas técnicas, através do restauro, refazem a vida pelo papel.

E-mail - gdimen@uol.com.br


Texto Anterior: Ônibus ainda ocupam duas faixas na ligação entre centro-Pirituba
Próximo Texto: A cidade é sua: Leitora reclama que árvore ameaça cair sobre sua casa
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.