São Paulo, segunda-feira, 17 de maio de 2004

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MOACYR SCLIAR

Lutando contra a invasão

Invasão das cigarras toma conta dos EUA. Bilhões de insetos alados, extremamente barulhentos e de olhos vermelhos estão invadindo mais de dez Estados norte-americanos. Folha Ciência, 15.mai.2004

Embora esperada -tratava-se de fenômeno cíclico, ocorrendo a cada dez anos- e apesar das explicações dos cientistas, a invasão das cigarras desencadeou uma onda de paranóia sem precedentes nos Estados Unidos, sobretudo por ocorrer num período de conflitos externos violentos. Não faltou quem visse no fato uma variante de guerra biológica, usando insetos ao invés de germes. Uma organização anticomunista, renascida das próprias cinzas graças ao alarme causado pelo noticiário, listava vários argumentos em favor dessa tese. O principal era a coloração dos olhos, de um vermelho muito vivo. "Por que vermelho?", perguntava a declaração da entidade. "Por que não azuis, ou castanhos? Simples: porque vermelho é a cor da revolução, é a cor da subversão, é a cor do comunismo." As especulações iam mais além: o canto das cigarras seria apenas uma versão, adaptada para insetos, da "Internacional", o tradicional hino comunista. Ensurdecer os cidadãos com esse hino faria o efeito de uma verdadeira lavagem cerebral por via auditiva.
Tantas foram as pressões que o governo viu-se obrigado a tomar providências. Vários alternativas foram discutidas. Uma delas consistia em aprisionar cigarras, fotografá-las em posições abjetas, e depois colocar gigantescas reproduções dessas fotos em outdoors, de modo a humilhar os insetos e convencê-los a deixar o país. Mas as fotos sem dúvida seriam desagradáveis e acabariam por resultar em prejuízo para a própria campanha. Da mesma maneira, medidas como usar mísseis cheio de inseticidas foram descartadas. Chegou-se a um impasse; ao comitê de crise, reunido em tempo integral, já não ocorria nenhuma boa idéia. Foi então que um dos membros do comitê lembrou-se de uma fábula de La Fontaine que tinha lido ainda na escola. A fábula chamava-se "A cigarra e a formiga". Ali estava a solução.
Bilhões de formigas foram imediatamente coletadas e treinadas, mediante técnicas comportamentais, para atacarem os galhos das árvores onde as cigarras depositariam seus ovos. Dessa maneira a espécie seria simplesmente extinta.
A operação, batizada de "Você cantava, agora dance", revestiu-se do mais completo êxito. Galhos tombavam das árvores, com os ovos das cigarras, e eram imediatamente destruídos. A invasão das cigarras chegava ao fim e nunca mais se repetiria.
O problema agora é o que fazer com as formigas, que estão se espalhando por todo o país. Mas isto é fácil: basta reunir um outro comitê de crise. Basta pensar em alguma outra fábula de La Fontaine.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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