São Paulo, domingo, 17 de maio de 1998

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GILBERTO DIMENSTEIN
Por que a polícia sozinha nunca vai funcionar

A psiquiatra Sandra Scivoletto nunca tinha visto alguém odiar tanto o próprio nariz.
O ódio era tamanho que o nariz era submetido deliberadamente a doses maciças de cocaína apenas para destruí-lo e forçar uma cirurgia plástica -os pais do rapaz se recusavam a pagar a operação.
A obsessão virou vício. Para comprar a droga, V.L., de 15 anos, de uma família de classe média alta, começou a roubar.
Quando os pais descobriram o filho na criminalidade, conseguiram convencê-lo a se tratar com Sandra, onde vasculhou as razões dos seus distúrbios, sintetizadas na estética facial.
Junto com terapia que remexeu nos traumas de infância, ele recebeu antidepressivos e, como sonhava, fez a cirurgia.
Aos poucos foi deixando a cocaína, entusiasmou-se pelo trabalho e, hoje, consegue se manter limpo.
Logo descobriu que o nariz era uma mentira; a verdade era mais profunda.
"Ele se transformou num exemplo de sucesso e começou a ajudar outras pessoas viciadas", conta a psiquiatra, coordenadora executiva do Grea, departamento do Hospital das Clínicas, em São Paulo, responsável por programas de prevenção às drogas.
Que aconteceria se o rapaz não tivesse tido a chance de um tratamento e apoio da família?



A resposta está numa pesquisa da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), que mostra, em detalhes, até onde vai a relação entre cocaína, incluído o crack, e a criminalidade.
Já se sabia dessa explosiva combinação, provocando insegurança nos centros urbanos.
O trabalho desenvolvido pelos psiquiatras Ronaldo Laranjeira e John Dunn, porém, traz números, a partir de entrevistas com 294 usuários, espalhados em hospitais públicos e clínicas particulares. A coleta se encerrou no final do ano passado.
Relevante: por envolver clínicas particulares, os pesquisadores abrangeram também as classes média e alta, onde se incluiu o jovem V.L.



À medida em que o vício vai provocando desespero, a primeira reação é vender os próprios pertences, de aparelho de som a roupas.
Dos entrevistados, 65% foram levados a esse mercado de trocas. É o passo inicial à delinquência.
Esgotado esse recurso, surrupiam a família, o que, segundo a pesquisa, atinge 39% dos entrevistados. Depois entram no esquema mais pesado. Roubos e furtos (38%), assaltos armados (21%).
Uma boa parte vende drogas, tornando-se microtraficantes. "Vejo que o tráfico entrou nas escolas porque o estudante se transformou em traficante", afirma Laranjeira, acostumados a receber, em seu consultório particular, alunos das escolas particulares.


Nada mais revelador do desespero do que um dado especial. Das mulheres, 24% venderam o corpo para comprar droga -o que aconteceu com 12% dos homens.
Frequentemente estão enfrentando a polícia ou, no caso dos pobres, já estiveram presos.
O que apenas joga ainda mais na marginalidade quem já está excluído.


Num outro levantamento, também realizado pelos dois pesquisadores, se constatou como é arriscada a vida dos viciados em crack.
Desde 1993, eles acompanharam 103 pessoas internadas num hospital público de São Paulo (Hospital Geral de Parada de Taipas).
Dois anos depois, 13 estavam mortos, nove presos e dois desaparecidos.



O tamanho do desastre está resumido na sigla V.L.
Apenas uma ínfima minoria consegue, simultaneamente, ter ajuda familiar e tratamento médico; dessa combinação resulta a entrada no mercado de trabalho.
Até para a classe média é um peso econômico; os planos de saúde não encaram vício como doença.
Temos aí a seguinte arapuca social. O crack se espalha, os viciados entram na criminalidade, não são tratados, mas são perseguidos como delinquentes.
Mesmo que sejam tratados, a imensa maioria não tem estudo e, com dificuldade, conseguiria um emprego.
Detalhe: em média, um microtraficante, também conhecido como avião, ganha R$ 30 por dia.
Quem oferece mais no mercado para alguém sem escolaridade?



E a maioria da população, estimulada por ignorantes e demagogos, está convencida de que apenas uma polícia mais violenta resolveria a segurança das cidades.
Apenas repressão é tão eficiente como trocar o nariz para acabar com o cheiro ruim.



PS- Uma extraordinária idéia está saindo do papel para ajudar na saúde dos jovens, mais vulneráveis às drogas. Com apoio do Hospital da Referência da Mulher, a Associação da Bolsa de Mercadoria e Futuros (BM&F) vai treinar agentes de saúde adolescentes.
Elas vão receber um salário para, em suas comunidades e nas escolas, mostrar aos colegas, conhecidos e vizinhos os riscos à saúde, numa medicina preventiva.

E-mail: gdimen@uol.com.br


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