São Paulo, terça-feira, 17 de junho de 2008

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CECILIA GIANNETTI

Aqui a cobra fuma


Sugiro que o governo arranje um amor para cada fumante. E assim ocuparemos as nossas bocas com outras

ENTÃO VOCÊ ME ama e também te quero muito bem -e você quer que eu pare de fumar. A prefeitura também o queria -que eu parasse de fumar, não a você- e por isso forçou os estabelecimentos cariocas a enxotarem seus fumantes para a rua. O que, nas boates, foi uma piada e um fracasso. Várias placas nada sutis estão nas paredes escuras dos clubes noturnos; em algumas delas, pode-se ver uma caveira que acena ao lado de um túmulo e diz, sorrindo: "Te espero aqui do outro lado, fumante!", ou coisa parecida.
Essas imagens estão espalhadas pelas casas noturnas, onde ainda é um charme bogartiano bebericar vodca Pepper e cuspir fumaça na cara do seu objeto de maior interesse naquela noite. A noite é selvagem, meu amor, e a cobra fuma.
Não consigo me deter na palavra "amar", ou amor, ou amável, amabilidades. Só penso onde diabos você teria escondido meu isqueiro hoje. Os cigarros estão aqui no bolso da minha calça jeans. Comprei ontem à noite, ao desviar do caminho da academia. Não se pode pular com cólicas de mulher. Mas se pode fumar.
A lei antifumo caiu! Vamos gozar outra vez! Devolva meu isqueiro ou quase queimarei a franja do cabelo outra vez tentando acender um mísero cigarrinho no fogão.
Ou vou até a porta de nosso vizinho do apartamento 257, que é personal trainer tatuado, e peço fogo a ele. Que tal essa? Ele me atenderá com um sorriso de quem já ouviu centenas de vezes a mesma conversinha: "Um isqueirinho, um punhadinho de açúcar, tens, garanhão?" E sem camisa. O resto, ao menos na sua cabeça de macho enciumado, será um roteiro de filme pornô.
Que me desculpem os não-fumantes, orgulhosos de suas virtudes; mas todos temos defeitos. E eu adoraria crer que esse, o de tragar lentamente a fumaça branco-azulada, fosse o meu único.
Meu avô era sapateiro. Trabalhava ali na praça Onze, berço do samba do Rio de Janeiro, essas coisas todas. Antes disso, foi cafetão. A família de minha avó só permitiu que se casasse com ela em caso de ele largar o vício de explorar as mulheres da vila do Mangue. Apaixonado, ele nunca mais lidou com aquelas pobres mulheres. E assim virou sapateiro, por amor. Mas seguiu fumando a vida inteira. Esse vício não lhe tiraram, mas foi o que lhe tirou a vida, infelizmente. Sim, toda história tem dois lados -ao menos.

 

Outros isqueiros estão perdidos pela nossa casa, atrás de móveis centenários, da máquina de costura de minha avó, dos berços de caixa de papelão de animais semimortos que você traz para casa, com a desculpa de ampará-los e alimentá-los, mas só até que estejam saudáveis. Acabam ficando, como eu fiquei. Curada de quase tudo, exceto dessa vontade incontrolável de fumar e fumar e fumar. Ou de ao menos de acender o cigarro e detê-lo entre os dedos. Onde foi parar o prazer? "Eu te amo. Pare de fumar!". Amor sem prazer? E puxar e soprar a fumaça? Ok, você venceu: dessa vez não vou tragar. Porque a palavra "amor" causou-me incômodo culposo.
Adesivos antifumo e estúpidas campanhas com caveiras nas paredes dos botecos não vão nos fazer parar de fumar. Sugiro que o governo arranje um amor para cada fumante. E assim ocuparemos nossas bocas com outras, em vez de entupi-las com aquele objeto perfeitamente cilíndrico, que de repente até soa erótico, que se acende e nos aquece.
Um amor para cada fumante, prefeito. E largamos o cigarro.
Combinado?


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