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Dar ou não dar esmolas às classes perigosas?
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
Não dou, mas quando o menino
é preto e pequeno num dia de
chuva ininterrupta, a coisa muda
de figura. Ele estava bem na frente da farmácia, entre uma loja
Blockbuster e uma 7-Eleven, loja
de conveniência. Estava bem esmagado (sem saber) por esses
dois símbolos da exploração do
capital global.
Mal estacionei, ele perguntou se
podia "olhar", quer dizer, guardar o carro. Não acreditei na proposta. Ele era ridiculamente pequeno, teria 5, no máximo 6 anos,
e carregava um skate de madeira
debaixo do braço. Olhar o quê,
cuidar do quê, guardar o quê,
aquela pessoinha?
Meu primeiro impulso foi, como sempre, demonstrar toda a
minha irritação e dizer que "sim,
pode olhar". Mas vacilei, me perguntando se um menino daquele
tamanho furaria um pneu, riscaria um carro. Olhei em volta, para
ver se encontrava a mãe ou o pai
escondidos. Não vi ninguém.
Tive vontade de ser outra pessoa, alguém extrovertido como
certos amigos meus que sabem
conversar com criança de rua, esmoler, marginal, esses tipos. Alguém que soubesse dizer, com humor e risos no rosto: "mas, então,
seu danadinho, quem disse que
você sabe guardar um carro,
hein? e se o bandido te pegar,
hein?", e passasse a mão pela cabeça do menino. Não consigo. Fico muda, presa na teia da mentira do guardador de carros.
Antigamente não era assim.
Ninguém questionava o ato de
dar esmolas. Em Recife, pelo menos, era natural guardar roupas,
sapatos velhos e sobras de comida
para dar aos mendigos que batiam palmas nas portas das casas.
Nós, as crianças, ficávamos amigos deles, sabíamos quando vinham, conhecíamos todos pelo
nome, Nina, o Velhinho do Fio,
Pedro da Cachorra.
Mas aquilo era outro mundo.
Não havia dinheiro nem existiam
ainda universos tão inacessíveis
como uma Blockbuster ou uma 7-Eleven. A distância social entre os
mendigos e nós era, aliás, muito
pequena. Não havia carros nem
vídeos. Havia antes a ameaça
constante de que também nós tivéssemos de mendigar de uma
hora para outra. A vida era assim. Os ricos não tinham contato
conosco, nem nós com eles.
Hoje, dizem, sabe como é, a recessão é mundial. Se a pessoa sai
dando esmola, incentiva a mendicância etc. São necessárias políticas sociais de combate à miséria
e blablablá. Hoje, sabe como é, o
modo de produção capitalista
passa por uma mudança, o neoliberalismo (privatização, desregulação), e acredita-se que o dinheiro e o mercado, sozinhos, vão resolver os problemas do menino
preto que mendiga.
Lá vinha eu voltando ao carro
-eu, uma representante da vasta classe média que tem acesso ao
consumo de massa e que se defende (em palavras de um estudioso)
de forma conservadora contra os
que, com toda a naturalidade, designa por marginais e rejeita, como tinha rejeitado as "classes perigosas" no século 19.
Um excluído, o menino. Lá vinha ele, excluído do mercado da
comida, do mercado da moradia,
do mercado da saúde, do mercado da educação, do mercado do
consumo de fitas de vídeo e baboseiras de conveniência.
Mal entrei no carro e ele se
aproximou. Dei-lhe uma nota de
R$ 1, que ele enfiou no bolso da
camisa. Depois ele subiu no skate
e saiu se equilibrando na chuva
com espantosa desenvoltura.
E-mail: mfelinto@uol.com.br
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