São Paulo, Terça-feira, 18 de Janeiro de 2000


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Dar ou não dar esmolas às classes perigosas?

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Não dou, mas quando o menino é preto e pequeno num dia de chuva ininterrupta, a coisa muda de figura. Ele estava bem na frente da farmácia, entre uma loja Blockbuster e uma 7-Eleven, loja de conveniência. Estava bem esmagado (sem saber) por esses dois símbolos da exploração do capital global.
Mal estacionei, ele perguntou se podia "olhar", quer dizer, guardar o carro. Não acreditei na proposta. Ele era ridiculamente pequeno, teria 5, no máximo 6 anos, e carregava um skate de madeira debaixo do braço. Olhar o quê, cuidar do quê, guardar o quê, aquela pessoinha?
Meu primeiro impulso foi, como sempre, demonstrar toda a minha irritação e dizer que "sim, pode olhar". Mas vacilei, me perguntando se um menino daquele tamanho furaria um pneu, riscaria um carro. Olhei em volta, para ver se encontrava a mãe ou o pai escondidos. Não vi ninguém.
Tive vontade de ser outra pessoa, alguém extrovertido como certos amigos meus que sabem conversar com criança de rua, esmoler, marginal, esses tipos. Alguém que soubesse dizer, com humor e risos no rosto: "mas, então, seu danadinho, quem disse que você sabe guardar um carro, hein? e se o bandido te pegar, hein?", e passasse a mão pela cabeça do menino. Não consigo. Fico muda, presa na teia da mentira do guardador de carros.
Antigamente não era assim. Ninguém questionava o ato de dar esmolas. Em Recife, pelo menos, era natural guardar roupas, sapatos velhos e sobras de comida para dar aos mendigos que batiam palmas nas portas das casas. Nós, as crianças, ficávamos amigos deles, sabíamos quando vinham, conhecíamos todos pelo nome, Nina, o Velhinho do Fio, Pedro da Cachorra.
Mas aquilo era outro mundo. Não havia dinheiro nem existiam ainda universos tão inacessíveis como uma Blockbuster ou uma 7-Eleven. A distância social entre os mendigos e nós era, aliás, muito pequena. Não havia carros nem vídeos. Havia antes a ameaça constante de que também nós tivéssemos de mendigar de uma hora para outra. A vida era assim. Os ricos não tinham contato conosco, nem nós com eles.
Hoje, dizem, sabe como é, a recessão é mundial. Se a pessoa sai dando esmola, incentiva a mendicância etc. São necessárias políticas sociais de combate à miséria e blablablá. Hoje, sabe como é, o modo de produção capitalista passa por uma mudança, o neoliberalismo (privatização, desregulação), e acredita-se que o dinheiro e o mercado, sozinhos, vão resolver os problemas do menino preto que mendiga.
Lá vinha eu voltando ao carro -eu, uma representante da vasta classe média que tem acesso ao consumo de massa e que se defende (em palavras de um estudioso) de forma conservadora contra os que, com toda a naturalidade, designa por marginais e rejeita, como tinha rejeitado as "classes perigosas" no século 19.
Um excluído, o menino. Lá vinha ele, excluído do mercado da comida, do mercado da moradia, do mercado da saúde, do mercado da educação, do mercado do consumo de fitas de vídeo e baboseiras de conveniência.
Mal entrei no carro e ele se aproximou. Dei-lhe uma nota de R$ 1, que ele enfiou no bolso da camisa. Depois ele subiu no skate e saiu se equilibrando na chuva com espantosa desenvoltura.


E-mail: mfelinto@uol.com.br



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