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MOACYR SCLIAR
As letras no banheiro
Papel higiênico impresso com lições
de inglês. Coisas desse tipo fazem
parte do livro "1000 Extraordinary
Objects", produzido pela editora
Taschen, da Benetton.
Ilustrada (Marcelo Coelho),
16.jan.2002
Alguns gostam de ler
sentados na poltrona. Outros preferem a cama; e olham
com prazer a pilha de livros que se
forma na mesa de cabeceira, ignorando o risco que pode representar a queda de tal pilha sobre
a pessoa. Outros, ainda, lêem no
banheiro.
Francisco era desses. Lia no banheiro. Apesar das advertências
de seu velho médico: "Você vai
acabar com hemorróidas. Evacuar é uma atividade que exige
atenção integral. O corpo pune
quem não segue esta regra." Pois
Francisco não a seguia. Seu estoque de livros no banheiro era
muito maior que o estoque de papel higiênico: sofria de prisão de
ventre, mas não se importava:
graças a ela, tornava-se cada vez
mais culto e letrado.
E aí ficou sabendo do papel higiênico impresso com lições em
inglês. Vibrou: grande invenção,
feita especialmente para gente como ele. Mandou buscar no exterior vários rolos do produto. Que
custou muito caro, naturalmente.
Mas Francisco achou que valia a
pena. Diferentemente de certas
marcas nacionais, cujo comprimento às vezes encurta, aqueles
rolos eram bastante longos. Tinham de sê-lo: inglês não é uma
língua fácil de aprender.
E assim Francisco iniciou o seu
curso em caráter, digamos, privado. No começo era muito chato,
porque tratava-se só de gramática. Francisco aprendeu as regras
básicas e foi aumentando o seu
vocabulário. Ao final do terceiro
rolo já conseguia traduzir os títulos dos filmes e até ler, com alguma dificuldade, jornais. Estes jornais, é bom dizer, eram usados
unicamente como fonte de informação. Francisco não era daqueles que substituem o papel higiênico por similares, mesmo em inglês.
Com o quarto rolo veio uma
surpresa agradável: Francisco estava entrando na literatura. Começou pela poesia: os sonetos de
Shakespeare, que lia com comovida reverência. Tanta reverência
que a esposa, impaciente, batia
na porta:
- Eu sei que você gosta de ler no
banheiro. Mas o pessoal está nos
esperando para jantar, Francisco!
Com um suspiro, terminava a
leitura. E, embora fosse um sacrilégio, limpava-se com aquele precioso material. Desejando que algo do talento de Shakespeare o
impregnasse, ainda que por via
retrógrada.
O auge da emoção ocorreu no
quinto rolo, todo dedicado a histórias de suspense, o gênero de
que Francisco mais gostava. Ali
estavam, impressos no papel higiênico, os contos de Edgar Allan
Poe. Ali estava Sherlock Holmes,
esclarecendo crimes. No dia em
que começou este quinto rolo,
Francisco preparou-se para horas
de deleite.
Em vez disso, um choque. De repente, estava com diarréia -resultado, talvez, de alguma coisa
que tinha comido fora de casa.
Diarréia terrível, um verdadeiro
dilúvio. E, nessa emergência, ele
não teve outro remédio senão sacrificar o amado papel higiênico.
Sem esclarecer nenhum crime sequer, Holmes era lançado ignominiosamente no vaso e sumia
em meio à fétida e líquida matéria fecal. E junto ia o pobre Poe.
Francisco não tem mais lido no
banheiro. Em parte porque está
seguindo o conselho do médico.
Mas, principalmente, porque não
quer sofrer outra desilusão.
Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às
segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal
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