São Paulo, segunda-feira, 18 de fevereiro de 2002

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MOACYR SCLIAR

As letras no banheiro

 Papel higiênico impresso com lições de inglês. Coisas desse tipo fazem parte do livro "1000 Extraordinary Objects", produzido pela editora Taschen, da Benetton.
Ilustrada (Marcelo Coelho),
16.jan.2002

Alguns gostam de ler sentados na poltrona. Outros preferem a cama; e olham com prazer a pilha de livros que se forma na mesa de cabeceira, ignorando o risco que pode representar a queda de tal pilha sobre a pessoa. Outros, ainda, lêem no banheiro.
Francisco era desses. Lia no banheiro. Apesar das advertências de seu velho médico: "Você vai acabar com hemorróidas. Evacuar é uma atividade que exige atenção integral. O corpo pune quem não segue esta regra." Pois Francisco não a seguia. Seu estoque de livros no banheiro era muito maior que o estoque de papel higiênico: sofria de prisão de ventre, mas não se importava: graças a ela, tornava-se cada vez mais culto e letrado.
E aí ficou sabendo do papel higiênico impresso com lições em inglês. Vibrou: grande invenção, feita especialmente para gente como ele. Mandou buscar no exterior vários rolos do produto. Que custou muito caro, naturalmente. Mas Francisco achou que valia a pena. Diferentemente de certas marcas nacionais, cujo comprimento às vezes encurta, aqueles rolos eram bastante longos. Tinham de sê-lo: inglês não é uma língua fácil de aprender.
E assim Francisco iniciou o seu curso em caráter, digamos, privado. No começo era muito chato, porque tratava-se só de gramática. Francisco aprendeu as regras básicas e foi aumentando o seu vocabulário. Ao final do terceiro rolo já conseguia traduzir os títulos dos filmes e até ler, com alguma dificuldade, jornais. Estes jornais, é bom dizer, eram usados unicamente como fonte de informação. Francisco não era daqueles que substituem o papel higiênico por similares, mesmo em inglês.
Com o quarto rolo veio uma surpresa agradável: Francisco estava entrando na literatura. Começou pela poesia: os sonetos de Shakespeare, que lia com comovida reverência. Tanta reverência que a esposa, impaciente, batia na porta:
- Eu sei que você gosta de ler no banheiro. Mas o pessoal está nos esperando para jantar, Francisco!
Com um suspiro, terminava a leitura. E, embora fosse um sacrilégio, limpava-se com aquele precioso material. Desejando que algo do talento de Shakespeare o impregnasse, ainda que por via retrógrada.
O auge da emoção ocorreu no quinto rolo, todo dedicado a histórias de suspense, o gênero de que Francisco mais gostava. Ali estavam, impressos no papel higiênico, os contos de Edgar Allan Poe. Ali estava Sherlock Holmes, esclarecendo crimes. No dia em que começou este quinto rolo, Francisco preparou-se para horas de deleite.
Em vez disso, um choque. De repente, estava com diarréia -resultado, talvez, de alguma coisa que tinha comido fora de casa. Diarréia terrível, um verdadeiro dilúvio. E, nessa emergência, ele não teve outro remédio senão sacrificar o amado papel higiênico. Sem esclarecer nenhum crime sequer, Holmes era lançado ignominiosamente no vaso e sumia em meio à fétida e líquida matéria fecal. E junto ia o pobre Poe.
Francisco não tem mais lido no banheiro. Em parte porque está seguindo o conselho do médico. Mas, principalmente, porque não quer sofrer outra desilusão.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal



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