São Paulo, quinta-feira, 18 de março de 2010

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PASQUALE CIPRO NETO

"Quando o frio vem nos aquecer o coração..."


Em "Quando o frio vem nos aquecer o coração...", não somos nós os aquecidos pelo frio, mas o nosso coração

RESPONDA JÁ E AGORA: o papel do pronome "nos" em "Quando o frio vem nos aquecer..." é o mesmo que se vê em "Quando o frio vem nos aquecer o coração..."? Em outras palavras, o que o frio aquece em cada um dos casos?
Bem, antes que entremos no mérito da questão (e antes que algum chato de galocha, desprovido de sensibilidade poética e existencial, diga que o frio não aquece), convém lembrar que, na encantadora letra de "Fênix", de Jorge Vercilo (a belíssima melodia é de Flávio Venturini), há uma pletora de ricas imagens. Uma delas é justamente a que está no título desta coluna. Outra vem logo a seguir na letra ("Quando a noite faz nascer a luz da escuridão...").
Em ambas as passagens, o letrista se vale de paradoxos que, construídos com habilidade e sensibilidade, revelam a maravilhosa possibilidade (que temos!) de experimentar verdadeiramente esses contrários.
Mas voltemos ao rés do chão, ou seja, à gramática. Voltemos, pois, ao começo do texto, em que pergunto algo sobre o papel do pronome "nos" nas duas frases citadas. Volte a elas, por favor, e releia as perguntas que fiz. Posso continuar? Vamos lá. O papel não é o mesmo, não, assim como o que o frio aquece na primeira frase não é o que aquece na segunda.
Em "Quando o frio vem nos aquecer...", o complemento (direto) de "aquecer" é o pronome oblíquo "nos", cujo referente é o pronome reto "nós". Nesse caso, o frio aquece alguém, e esse alguém somos nós. Em "Quando o frio vem nos aquecer o coração...", não somos nós os aquecidos pelo frio, mas o nosso coração. Em outras palavras, a frase de Vercilo equivale a "Quando o frio aquece o nosso coração". Temos aí o pronome oblíquo átono "nos" com valor de possessivo, o que não é atributo exclusivo desse pronome, mas também de "me", "te", "lhe" e "vos".
Vejam-se estes versos de "Ainda Uma Vez Adeus", do grande poeta romântico Gonçalves Dias: "Mas quase no passo extremo, / No último arcar da esperança, / Tu me vieste à lembrança: / Quis viver mais e vivi!". O "me" de "Tu me vieste à lembrança" tem o mesmo papel do "nos" de "...o frio vem nos aquecer o coração", ou seja, equivale a um possessivo ("Tu me vieste à lembrança" = "Tu vieste à minha lembrança").
Nesse mesmo poema de Gonçalves Dias, encontra-se estoutro passo: "Nadam-te os olhos em pranto, / Arfa-te o peito, e no entanto / Nem me podes encarar". Em suas duas ocorrências, o oblíquo "te" tem valor de possessivo ("Os teus olhos nadam em pranto"; "O teu peito arfa").
E o "me" de "E no entanto nem me podes encarar"? Nada de ideia de posse agora. Esse "me" é o complemento (direto) de "encarar" (o referente desse "me" é o eu poético).
Convém lembrar que, embora seja frequente na modalidade escrita da língua, esse valor dos oblíquos átonos se registra também na oralidade, mas, nesse caso, nem sempre com a mesma delicadeza que se vê na poesia. Posso estar enganado, mas acho que, quando nervosas, as pessoas vociferam pérolas como "Eu te arranco as orelhas", em que o o oblíquo "te" equivale ao possessivo "tuas" ("Arranco as tuas orelhas"). Como fico (sempre) com a delicadeza da poesia, encerro com Caetano Veloso: "Vem / Eu vou pousar a mão no teu quadril / Multiplicar-te os pés por muitos mil..." (da antológica "Os Passistas"). Preciso explicar? Lá vai: "Multiplicar-te os pés" = "Multiplicar os teus pés". É isso.

inculta@uol.com.br


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