São Paulo, quinta-feira, 18 de julho de 2002

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PASQUALE CIPRO NETO

"Do muito ou pouco que houve entre você e eu"

Na última coluna, trocamos duas palavras sobre "eu" e "mim". O mote foi uma pergunta feita num programa de televisão acerca de "para mim fazer" e "para eu fazer". Vimos que a opção por "eu" ou "mim" não depende da ordem dos termos, da posição do pronome, da palavra que vem a seguir etc. A opção depende basicamente da função do pronome.
Essa discussão sobre "eu" e "mim" aparece com frequência nas dúvidas dos leitores. O texto da semana passada fez muitos deles perguntarem sobre outro caso: "Está tudo acabado entre eu e ela" ou "entre mim e ela"?
Ai, ai, ai! A questão é mais delicada do que talvez pareça. Pelos cânones da língua padrão, o pronome adequado é "mim", já que as preposições ("entre" é uma delas) não costumam reger o pronome reto da primeira do singular; regem o oblíquo tônico ("mim").
Tradução: assim como se diz "Ela vive bem sem mim" (e não "sem eu"; "sem" é preposição), "Ela não pensa em mim" (e não "em eu"; "em" é preposição) "Ela faz tudo por mim" ("por" é preposição), "Ela gosta de mim" ("de" é preposição), "Ela se refere a mim" ("a" é preposição), dever-se-ia dizer "Está tudo acabado entre ela e mim" (ou "entre mim e ela").
Nos clássicos e nos modernos, não faltam exemplos desse emprego: "Foi um duelo entre mim e a velhice" (M. de Assis, citado por Celso Cunha e Lindley Cintra); "Por que vens, pois, pedir-me adorações quando entre mim e ti está a cruz ensanguentada do calvário?" (A. Herculano, também citado por Cunha e Cintra); "Entre mim e os mortos há o mar/ e os telegramas" (C. Drummond de Andrade). Apesar de seu enfado com a modernice, o moderno, no caso, é Drummond ("E como ficou chato ser moderno./ Agora serei eterno."). No "Aurélio", encontra-se este exemplo: "Entre mim e Paulo vai tudo bem".
Na linguagem familiar, no entanto, não se verifica o cumprimento dessa prescrição gramatical. Em "A Nova Gramática do Português Contemporâneo", Celso Cunha e Lindley Cintra fazem esta observação: "A tradição gramatical aconselha o emprego das formas oblíquas tônicas depois da preposição entre. Na linguagem coloquial predomina, porém, a construção com as formas retas, construção que se vai insinuando na linguagem literária". Em seguida, vêm estes exemplos: "Entre eu e tu,/ Tão profundo é o contrato/ Que não pode haver disputa" (J. Régio); "Entre eu e minha mãe existe o mar" (Ribeiro Couto).
Em sua "Moderna Gramática Portuguesa", Evanildo Bechara diz que "a língua exemplar insiste na lição do rigor gramatical, recomendando, nestes casos, o uso dos pronomes oblíquos tônicos". Em seguida, o eminente professor faz esta ressalva: "Um exemplo como "Entre José e mim" dificilmente sairia hoje da pena de um escritor moderno". A afirmação de Bechara é comprovada por estes versos da antológica "Muito Romântico", de Caetano Veloso: "Acho que nada restou pra guardar ou lembrar/ do muito ou pouco que houve entre você e eu".
Agora é com você, leitor. Os cânones da língua padrão (ou "exemplar", como diz o querido Bechara), recomendam "entre mim e ela" (ou "entre ela e mim"). O uso efetivo, no entanto, aponta para outro lado. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
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