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DA JANELA PARA O MUNDO
Vida nos antigos asilos-colônias, que eram usados para isolar hansenianos, muda de perfil
Leprosários e doença ainda resistem no país
VINICIUS SOUZA
MARIA EUGÊNIA SÁ
DA REVISTA DA FOLHA
"Eu tinha nove anos quando os
guardas vieram, levaram minha
mãe e botaram fogo em casa com
tudo dentro. Tive de ir morar com
três irmãos na casa do meu avô
num sítio; meu pai não podia cuidar de todos sozinho", rememora
Nivaldo Mercúrio, 77. "Só voltei a
ver a mãe dois anos depois, mas a
10 m de distância. Ela não suportou o confinamento, morreu em
cinco anos. Tinha 32."
À primeira vista, lembra relato
de sobrevivente de guerra ou algo
do gênero. A história de Nivaldo
tem ingredientes como diáspora
familiar, denúncias anônimas, fuga, perseguição policial, fichamento, clausura compulsória.
Mas a infelicidade que atingiu primeiro sua mãe e depois ele próprio foi contrair, em pleno século
20, uma doença que existe e resiste desde a Antiguidade -a lepra.
Por incrível que pareça, cenas
como a acima descrita eram a tônica da política nacional de saúde
até quase o fim dos anos 60, a década do paz, amor & liberdade.
Tratados como criminosos, os
portadores de hanseníase que não
se apresentavam espontaneamente para o confinamento eram
denunciados e contra eles se expedia ordens de captura.
Caçados literalmente a laço pela
polícia sanitária, fichados no DPL
(Departamento de Prevenção à
Lepra) e internados compulsoriamente em 35 asilos-colônias afastados das cidades, na maior parte
das vezes os doentes nunca mais
voltavam a encontrar a família. Os
medicamentos de então eram ineficazes e quase nenhum alívio traziam às dores e seqüelas da doença. Desespero, depressão e loucura eram constantes nas colônias,
onde regras rígidas regulavam a
convivência. Bebidas alcoólicas,
reclamações e fugas eram reprimidas com violência e cadeia.
Com um histórico tão trágico,
era de se esperar que os leprosários tivessem sido banidos do mapa, fossem recurso de filme antigo
ou de um passado distante. No
Brasil, porém, eles resistem, assim
como a própria doença -somos
um dos nove países do mundo em
que a hanseníase é endêmica.
Os 33 asilos ainda ativos no país
-quatro no Estado de São Paulo- abrigam cerca de 5.000 pessoas. Agora nem todos doentes;
boa parte dos moradores é sobrevivente dos tempos da internação
compulsória, gente que perdeu o
contato com os parentes e a vida
fora dos asilos.
Depois de algumas tentativas
fracassadas de reinserção dos ex-confinados na sociedade, a Secretaria da Saúde reconheceu em
1995 que o Estado tinha uma dívida social com eles e lhes garantiu
o usufruto da casa em que viviam
ou vagas em enfermarias e pavilhões comunitários, para aqueles
que tivessem necessidades especiais, mais alimentação, remédios
e pensão de um salário mínimo.
Além disso, o panorama legal e
medicamentoso da hanseníase
melhorou bastante, mas o estigma que sempre cercou a doença
não, o que inibe a vida fora da ex-colônia. A simples menção da palavra lepra ou da politicamente
correta hanseníase, tornada oficial por uma lei federal de 1995,
costuma despertar o medo milenar do contágio através do mero
contato com o doente ou com
qualquer objeto "contaminado".
Nada mais equivocado. Apesar
de infecto-contagiosa, a hanseníase deixa de ser transmissível
assim que paciente inicia o tratamento com a poliquimioterapia
(PQT), introduzida nos anos
1980. Sem contar que mais de 80%
da população é geneticamente resistente ao bacilo de Hansen e
nunca vai ser contaminada.
Tudo isso reduziu a exclusão
dos portadores e provocou alterações no panorama dos ex-asilos.
"Desde 1990, quando o primeiro casal de internos conseguiu autorização para criar a filha dentro
da propriedade do hospital, por
causa do Estatuto da Criança e do
Adolescente que tornou mais difícil a separação de pais e filhos, o
perfil dos moradores vem mudando lentamente", conta Maria
Aparecida Hilário dos Santos, diretora social do Hospital Dr.
Francisco Ribeiro Arantes, no distrito de Cidade Nova, que concentra cerca de 40 mil dos 120 mil habitantes de Itu. "Já não é difícil encontrar numa casa duas ou três
gerações da mesma família."
Localizado a 15 km do centro da
cidade, o ex-Asilo-Colônia de Pirapitingüi virou um bairro de
ruas arborizadas e jeito de interior. São quase 300 casinhas, que
abrigam a maior parte dos 280
moradores em condições de viverem sozinhos. Outros 130 internos que requerem maiores cuidados ficam nas enfermarias, no
hospital psiquiátrico ou num dos
dois pavilhões coletivos.
Dentro dos 330 hectares cercados por arame farpado, existem
casas e prédios abandonados,
quase em ruínas, como o antigo
edifício da cadeia. Tem ainda um
pequeno comércio gerido pelos
próprios internos e áreas comuns,
como o refeitório. E igrejas, muitas igrejas, católicas, protestantes,
evangélicas e espíritas.
Dos cerca de 650 habitantes do
"Pira", 72 são menores de 12 anos.
Pacientes que recebem tratamento para a hanseníase ou, mais comum, para seqüelas e problemas
relacionados são 408, pouco mais
de cem remanescentes do tempo
da "compulsória". Os doentes novos não chegam a uma dúzia.
Com isso, a média de idade é de
60 anos, com alguns moradores
acima dos 100 anos. Dos 585 funcionários do hospital, 40 são médicos. O orçamento da instituição
para 2005 é de R$ 13,5 milhões.
Entre os poucos moradores que
não são hansenianos ou parentes
desses, estão alguns funcionários
do hospital e quatro famílias de
policiais, que fazem a segurança.
O preconceito e a ignorância
não raro redundam em violência,
especialmente contra os jovens.
Filha de hansenianos, Adriana
Sturaro, 33, mora em Pirapitingüi
desde a adolescência, época em
que manifestou os primeiros sintomas. A doença a fez perder longos períodos de estudo e, aos 18,
teve de fazer a 6ª série em uma escola fora da colônia. "Mas descobriram que eu morava aqui e passaram um bilhete me ameaçando.
Uns dias depois entrou no pátio
um cara grandão, que me bateu
tanto que eu desmaiei e tive de ser
levada para o hospital."
O episódio provocou a expulsão
da diretora -e outra interrupção. Adriana conseguiu completar os estudos num curso supletivo, mas dizia a todos que morava
no bairro de Cidade Nova. Até hoje, diz, raramente sai da colônia.
"É mais fácil trazer o sadio para
dentro de um bairro que possui
toda essa infra-estrutura montada, do que tentar integrar plenamente os seqüelados numa cidade fora daqui", admite o diretor-geral do hospital, Márcio da Cruz
Leite. "Isso seria uma fantasia."
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