São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

DA JANELA PARA O MUNDO

Vida nos antigos asilos-colônias, que eram usados para isolar hansenianos, muda de perfil

Leprosários e doença ainda resistem no país

VINICIUS SOUZA
MARIA EUGÊNIA SÁ
DA REVISTA DA FOLHA

"Eu tinha nove anos quando os guardas vieram, levaram minha mãe e botaram fogo em casa com tudo dentro. Tive de ir morar com três irmãos na casa do meu avô num sítio; meu pai não podia cuidar de todos sozinho", rememora Nivaldo Mercúrio, 77. "Só voltei a ver a mãe dois anos depois, mas a 10 m de distância. Ela não suportou o confinamento, morreu em cinco anos. Tinha 32."
À primeira vista, lembra relato de sobrevivente de guerra ou algo do gênero. A história de Nivaldo tem ingredientes como diáspora familiar, denúncias anônimas, fuga, perseguição policial, fichamento, clausura compulsória. Mas a infelicidade que atingiu primeiro sua mãe e depois ele próprio foi contrair, em pleno século 20, uma doença que existe e resiste desde a Antiguidade -a lepra.
Por incrível que pareça, cenas como a acima descrita eram a tônica da política nacional de saúde até quase o fim dos anos 60, a década do paz, amor & liberdade. Tratados como criminosos, os portadores de hanseníase que não se apresentavam espontaneamente para o confinamento eram denunciados e contra eles se expedia ordens de captura.
Caçados literalmente a laço pela polícia sanitária, fichados no DPL (Departamento de Prevenção à Lepra) e internados compulsoriamente em 35 asilos-colônias afastados das cidades, na maior parte das vezes os doentes nunca mais voltavam a encontrar a família. Os medicamentos de então eram ineficazes e quase nenhum alívio traziam às dores e seqüelas da doença. Desespero, depressão e loucura eram constantes nas colônias, onde regras rígidas regulavam a convivência. Bebidas alcoólicas, reclamações e fugas eram reprimidas com violência e cadeia.
Com um histórico tão trágico, era de se esperar que os leprosários tivessem sido banidos do mapa, fossem recurso de filme antigo ou de um passado distante. No Brasil, porém, eles resistem, assim como a própria doença -somos um dos nove países do mundo em que a hanseníase é endêmica.
Os 33 asilos ainda ativos no país -quatro no Estado de São Paulo- abrigam cerca de 5.000 pessoas. Agora nem todos doentes; boa parte dos moradores é sobrevivente dos tempos da internação compulsória, gente que perdeu o contato com os parentes e a vida fora dos asilos.
Depois de algumas tentativas fracassadas de reinserção dos ex-confinados na sociedade, a Secretaria da Saúde reconheceu em 1995 que o Estado tinha uma dívida social com eles e lhes garantiu o usufruto da casa em que viviam ou vagas em enfermarias e pavilhões comunitários, para aqueles que tivessem necessidades especiais, mais alimentação, remédios e pensão de um salário mínimo.
Além disso, o panorama legal e medicamentoso da hanseníase melhorou bastante, mas o estigma que sempre cercou a doença não, o que inibe a vida fora da ex-colônia. A simples menção da palavra lepra ou da politicamente correta hanseníase, tornada oficial por uma lei federal de 1995, costuma despertar o medo milenar do contágio através do mero contato com o doente ou com qualquer objeto "contaminado".
Nada mais equivocado. Apesar de infecto-contagiosa, a hanseníase deixa de ser transmissível assim que paciente inicia o tratamento com a poliquimioterapia (PQT), introduzida nos anos 1980. Sem contar que mais de 80% da população é geneticamente resistente ao bacilo de Hansen e nunca vai ser contaminada.
Tudo isso reduziu a exclusão dos portadores e provocou alterações no panorama dos ex-asilos.
"Desde 1990, quando o primeiro casal de internos conseguiu autorização para criar a filha dentro da propriedade do hospital, por causa do Estatuto da Criança e do Adolescente que tornou mais difícil a separação de pais e filhos, o perfil dos moradores vem mudando lentamente", conta Maria Aparecida Hilário dos Santos, diretora social do Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes, no distrito de Cidade Nova, que concentra cerca de 40 mil dos 120 mil habitantes de Itu. "Já não é difícil encontrar numa casa duas ou três gerações da mesma família."
Localizado a 15 km do centro da cidade, o ex-Asilo-Colônia de Pirapitingüi virou um bairro de ruas arborizadas e jeito de interior. São quase 300 casinhas, que abrigam a maior parte dos 280 moradores em condições de viverem sozinhos. Outros 130 internos que requerem maiores cuidados ficam nas enfermarias, no hospital psiquiátrico ou num dos dois pavilhões coletivos.
Dentro dos 330 hectares cercados por arame farpado, existem casas e prédios abandonados, quase em ruínas, como o antigo edifício da cadeia. Tem ainda um pequeno comércio gerido pelos próprios internos e áreas comuns, como o refeitório. E igrejas, muitas igrejas, católicas, protestantes, evangélicas e espíritas.
Dos cerca de 650 habitantes do "Pira", 72 são menores de 12 anos. Pacientes que recebem tratamento para a hanseníase ou, mais comum, para seqüelas e problemas relacionados são 408, pouco mais de cem remanescentes do tempo da "compulsória". Os doentes novos não chegam a uma dúzia.
Com isso, a média de idade é de 60 anos, com alguns moradores acima dos 100 anos. Dos 585 funcionários do hospital, 40 são médicos. O orçamento da instituição para 2005 é de R$ 13,5 milhões.
Entre os poucos moradores que não são hansenianos ou parentes desses, estão alguns funcionários do hospital e quatro famílias de policiais, que fazem a segurança.
O preconceito e a ignorância não raro redundam em violência, especialmente contra os jovens. Filha de hansenianos, Adriana Sturaro, 33, mora em Pirapitingüi desde a adolescência, época em que manifestou os primeiros sintomas. A doença a fez perder longos períodos de estudo e, aos 18, teve de fazer a 6ª série em uma escola fora da colônia. "Mas descobriram que eu morava aqui e passaram um bilhete me ameaçando. Uns dias depois entrou no pátio um cara grandão, que me bateu tanto que eu desmaiei e tive de ser levada para o hospital."
O episódio provocou a expulsão da diretora -e outra interrupção. Adriana conseguiu completar os estudos num curso supletivo, mas dizia a todos que morava no bairro de Cidade Nova. Até hoje, diz, raramente sai da colônia.
"É mais fácil trazer o sadio para dentro de um bairro que possui toda essa infra-estrutura montada, do que tentar integrar plenamente os seqüelados numa cidade fora daqui", admite o diretor-geral do hospital, Márcio da Cruz Leite. "Isso seria uma fantasia."


Texto Anterior: Gilberto Dimenstein: Aprendendo a tirar leite de pedra
Próximo Texto: Escritor também foi perseguido
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.