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MOACYR SCLIAR
O Rei da Estrada
Eu estava infeliz porque não podia dirigir. O senhor não pode imaginar como isso
me fazia falta, meritíssimo
Um homem cego foi condenado à prisão
na Grã-Bretanha, depois de ter sido flagrado dirigindo um carro no lado errado
de uma estrada. Omed Aziz, de 31 anos,
da cidade de Darlaston, que estava recebendo instruções de um motorista supostamente proibido de dirigir, recebeu
pena de 12 semanas de prisão. Aziz dirigia em uma velocidade que chegou a 56
quilômetros por hora em uma área residencial. Ele perdeu os dois olhos em uma
explosão de uma bomba no Iraque. Tem
apenas três dedos na mão direita, sofre
de tremores nas pernas e é parcialmente
surdo. Folha Online, 12 de setembro
"SIM, meritíssimo, eu reconheço meu erro. Como cego, eu não poderia dirigir;
nenhuma autoridade de trânsito me
daria a habilitação. Não estou negando o fato, estou admitindo minha culpa e estou pronto a arcar com
as conseqüências dela. Mas também
devo lhe dizer, meritíssimo, que não
estou arrependido. Não estou nem
um pouco arrependido.
No Iraque, meritíssimo, eu levava
uma vida normal. Não era rico, mas
também não era pobre. Eu tinha
uma pequena loja, tinha um apartamento e, principalmente, eu tinha
um carro. Sempre gostei de dirigir,
meritíssimo. E eu era muito bom na
direção. Rei da Estrada era o meu
apelido. Eu voava por aquelas rodovias, fui multado muitas vezes, mas
nunca parei de dirigir.
E aí veio a guerra, Saddam Hussein foi derrubado e começaram os
atentados. Uma bomba explodiu
bem em frente à minha loja, meritíssimo, e a explosão me atingiu em
cheio. Perdi dois dedos, tive lesões
neurológicas, fiquei surdo e fiquei
cego. Vim para a Inglaterra, onde recebo uma pensão mensal. Tenho o
que comer, tenho onde morar. Eu
podia até me considerar afortunado;
afinal, não tinha morrido, como tantos outros.
Mas a verdade é que eu estava tremendamente infeliz, meritíssimo.
Não por causa da surdez, não por
causa da cegueira. Eu estava infeliz
porque não podia dirigir. O senhor
não pode imaginar como isso me fazia falta, meritíssimo. Eu, que antes
voava pelas estradas, agora estava
privado da direção.
Foi então que eu me lembrei de
um filme, meritíssimo. "Perfume de
Mulher", com Al Pacino. O
senhor viu? Não viu? Pois era assim: o Al Pacino é um militar cego,
que resolve passar um fim de semana em grande estilo em Nova
York. Contrata um jovem estudante para acompanhá-lo e lá se vão
eles. De repente, o homem resolve
dirigir. Um cego dirigindo em Nova
York, o senhor já pensou? Mas
o militar é teimoso mesmo e lá estava ele, guiando a toda a velocidade, com o estudante ao lado dando
indicações.
Nunca mais vi esse filme, meritíssimo. Como poderia vê-lo, se estou cego? Mas a lembrança daquelas cenas em que o militar dirige
não me saía da cabeça. E assim resolvi fazer a mesma coisa. Pedi a
um amigo que alugasse um carro e
me acompanhasse. E ali estava eu,
ao volante, dirigindo. Claro, não
enxergava nada, mas só o fato de
estar no comando do carro era suficiente. Era como se eu tivesse recuperado o comando de minha vida. Que alegria, meritíssimo. Que
alegria.
Pode me punir, meritíssimo. Pode me mandar para a prisão. Mas
diga aos guardas que não deixem
nenhum carro por perto. Porque,
se facilitar, eu fujo. E fujo dirigindo, com ou sem habilitação, enxergando ou não. Sou ou não o Rei da
Estrada?"
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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