São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 2006

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MOACYR SCLIAR

O Rei da Estrada

Eu estava infeliz porque não podia dirigir. O senhor não pode imaginar como isso me fazia falta, meritíssimo

Um homem cego foi condenado à prisão na Grã-Bretanha, depois de ter sido flagrado dirigindo um carro no lado errado de uma estrada. Omed Aziz, de 31 anos, da cidade de Darlaston, que estava recebendo instruções de um motorista supostamente proibido de dirigir, recebeu pena de 12 semanas de prisão. Aziz dirigia em uma velocidade que chegou a 56 quilômetros por hora em uma área residencial. Ele perdeu os dois olhos em uma explosão de uma bomba no Iraque. Tem apenas três dedos na mão direita, sofre de tremores nas pernas e é parcialmente surdo. Folha Online, 12 de setembro "SIM, meritíssimo, eu reconheço meu erro. Como cego, eu não poderia dirigir; nenhuma autoridade de trânsito me daria a habilitação. Não estou negando o fato, estou admitindo minha culpa e estou pronto a arcar com as conseqüências dela. Mas também devo lhe dizer, meritíssimo, que não estou arrependido. Não estou nem um pouco arrependido.
No Iraque, meritíssimo, eu levava uma vida normal. Não era rico, mas também não era pobre. Eu tinha uma pequena loja, tinha um apartamento e, principalmente, eu tinha um carro. Sempre gostei de dirigir, meritíssimo. E eu era muito bom na direção. Rei da Estrada era o meu apelido. Eu voava por aquelas rodovias, fui multado muitas vezes, mas nunca parei de dirigir.
E aí veio a guerra, Saddam Hussein foi derrubado e começaram os atentados. Uma bomba explodiu bem em frente à minha loja, meritíssimo, e a explosão me atingiu em cheio. Perdi dois dedos, tive lesões neurológicas, fiquei surdo e fiquei cego. Vim para a Inglaterra, onde recebo uma pensão mensal. Tenho o que comer, tenho onde morar. Eu podia até me considerar afortunado; afinal, não tinha morrido, como tantos outros.
Mas a verdade é que eu estava tremendamente infeliz, meritíssimo. Não por causa da surdez, não por causa da cegueira. Eu estava infeliz porque não podia dirigir. O senhor não pode imaginar como isso me fazia falta, meritíssimo. Eu, que antes voava pelas estradas, agora estava privado da direção.
Foi então que eu me lembrei de um filme, meritíssimo. "Perfume de Mulher", com Al Pacino. O senhor viu? Não viu? Pois era assim: o Al Pacino é um militar cego, que resolve passar um fim de semana em grande estilo em Nova York. Contrata um jovem estudante para acompanhá-lo e lá se vão eles. De repente, o homem resolve dirigir. Um cego dirigindo em Nova York, o senhor já pensou? Mas o militar é teimoso mesmo e lá estava ele, guiando a toda a velocidade, com o estudante ao lado dando indicações.
Nunca mais vi esse filme, meritíssimo. Como poderia vê-lo, se estou cego? Mas a lembrança daquelas cenas em que o militar dirige não me saía da cabeça. E assim resolvi fazer a mesma coisa. Pedi a um amigo que alugasse um carro e me acompanhasse. E ali estava eu, ao volante, dirigindo. Claro, não enxergava nada, mas só o fato de estar no comando do carro era suficiente. Era como se eu tivesse recuperado o comando de minha vida. Que alegria, meritíssimo. Que alegria.
Pode me punir, meritíssimo. Pode me mandar para a prisão. Mas diga aos guardas que não deixem nenhum carro por perto. Porque, se facilitar, eu fujo. E fujo dirigindo, com ou sem habilitação, enxergando ou não. Sou ou não o Rei da Estrada?"


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha


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