São Paulo, quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

PASQUALE CIPRO NETO

Nomenclatura ou uso?


Não teremos passado da hora de falar seriamente sobre isso, sem devaneios ou posturas esquizofrênicas?

A UNESP ACABA DE realizar a primeira fase de seu vestibular de 2011. Aplicada no último domingo, a prova de conhecimentos gerais apresentou muitas questões interessantes, que de fato exigem do candidato conhecimentos gerais. Afinal, já está mais do que na hora de desembrutecer o nosso ensino e os nossos alunos, muitas vezes "treinados" apenas para decorar meia dúzia de bobagens, com total desprezo pela efetiva capacidade de leitura e, sobretudo, da percepção do que se lê.
Um fato, no entanto, chamou a atenção: a elaboração de questões que privilegiaram mais a nomenclatura gramatical do que o uso da língua propriamente dito, o que de certo modo entra em choque com o que se apregoa hoje em dia nos estudos linguísticos autoproclamados ultramodernos, pós-modernos, pós-advento do suprassumo da quintessência da modernidade linguística etc. Nesses estudos, costuma-se dizer que se deve desprezar a nomenclatura gramatical e, consequentemente, privilegiar o conhecimento do efetivo uso linguístico.
O leitor habitual deste espaço sabe que fico no meio-termo: nem supervalorizo a nomenclatura, nem a desprezo; quando a emprego, tento explicá-la, traduzi-la. Como consultar um dicionário sem saber o que é um substantivo, um adjetivo, uma preposição? Como saber pontuação sem um mínimo de noção de sintaxe? Como ler um texto clássico sem um mínimo de noção de certos processos da tradição gramatical? Como entender Machado quando o grande escritor diz "Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher" sem um mínimo de noção da regência "clássica" de certos verbos?
O mais interessante de tudo isso é que boa parte de certas teorias sai justamente das universidades cujos vestibulares cobram o oposto do que se prega em seus cursos de letras... O que dizer aos alunos? O que fazer no ensino da língua no ciclo fundamental e no médio? Não teremos passado da hora de falar seriamente sobre isso, sem devaneios ou posturas esquizofrênicas?
Posto isso, vamos a um exemplo do que fez a Unesp domingo. Com base num excerto de "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, formulou-se esta questão: "No fragmento apresentado, as formas verbais mais frequentes se enquadram em dois tempos do modo indicativo. Marque a alternativa que indica, pela ordem, o tempo verbal predominante no segundo parágrafo e o que predomina no quinto parágrafo".
No segundo parágrafo do excerto escolhido, o tempo predominante é o pretérito imperfeito do indicativo (recorria, cedia, resmungava, rezingava, engasgava-se, engolia, receava, rendia-se, aceitava etc.); no quinto, é o pretérito perfeito (ajustou, arrependeu-se, deixou, foi, mandou, sentou-se, concentrou-se, distribuiu, realizou, voltou etc.). Até aí, tudo bem, mas... O que significa o predomínio desses tempos em cada uma das passagens?
O mais interessante é que a Fuvest já fez questão "semelhante", a partir da mesma obra (e, salvo engano, de uma parte do mesmo excerto). E no que a questão da Fuvest diferia da feita pela Unesp? Justamente na abordagem. Enquanto esta se limitou a cobrar o conhecimento nomenclatural, aquela quis saber o que o predomínio de certo tempo verbal significa na narrativa.
O imperfeito designa fatos passados corriqueiros, habituais; o perfeito se refere a fatos não duradouros, situados num ponto específico do passado, em geral marcado por expressões temporais precisas ("daquela vez", "no dia seguinte"). Numa narrativa, isso faz toda a diferença. Uma coisa é dizer que a criança passava fome; outra coisa é dizer que ela passou fome. É isso.

inculta@uol.com.br


Texto Anterior: "Decisão impõe legalidade", diz procurador
Próximo Texto: Trânsito: CET implanta mudanças na Zona Azul na Vila Mariana
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.