São Paulo, Sábado, 18 de Dezembro de 1999


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LETRAS JURÍDICAS

Defeitos da intromissão do Estado

WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas

O Estado brasileiro, mesmo sob Constituição democrática, tem se intrometido cada vez mais na vida do cidadão, no mais das vezes sem ser chamado, em moldes muito parecidos com os que a ditadura pôs em prática. Da intromissão, para coisas boas e más, brota vigorosa fonte de novas questões judiciais, atravancando o Judiciário.
Faz tempo que tenho essa opinião, mas trato dela a contar da frase de Horácio Piva, presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), noticiada anteontem, segundo a qual somos vitimados por "sistema de governo ineficaz, que enraizou o absolutismo da burocracia no país".
A Constituição de 1988 ofereceu longa série de intervenções sobre o direito do cidadão, sob pretexto de o defender. Reiterou formas de estatismo vigentes no regime militar entre 1964 e 1985. A intervenção estatal se mostra, no exemplo mais gritante, em cada medida provisória modificando direitos, impedindo a mínima estabilidade jurídica.
Em novembro, nos últimos dez dias, saíram, em âmbito federal, oito leis, 12 decretos, seis atos declaratórios da Receita Federal, duas cartas circulares do Banco Central, nove instruções normativas, três portarias, dois pareceres e sete resoluções expedidas por órgãos da administração direta e indireta, sem falar nas 54 medidas provisórias, 20 das quais no dia 25 e nas milhares de normas estaduais e municipais.
A intervenção excessiva no ordenamento jurídico amplia a intromissão dos burocratas e estimula a apresentação de queixas ao Poder Judiciário. Cria situação paradoxal: embora órgão de governo, o Judiciário é congestionado porque os outros ramos do governo -o Executivo e o Legislativo- contribuem para a confusão. Violam direitos. Atentam contra a Constituição. Forçam a reação dos atingidos. O ministro Nelson Jobim, do STF (Supremo Tribunal Federal), tem razão quando diz que há leis malfeitas de propósito.
Não se trata de problema só brasileiro e propõe a discussão do papel da burocracia e de uma de suas vítimas, a magistratura. Muito embora os juízes não sejam eleitos e estejam distantes das vivências populares, tendendo a formar uma espécie de classe à parte, a importância de seu papel de cidadãos decorre da missão constitucional e legal de equilibrar relações entre o Estado e a sociedade, desde o reconhecimento da inconstitucionalidade das leis e de atos normativos.
A intervenção judicial tem proposto também a questão de saber se, em nosso processo democrático, deve ser aceito que juízes profissionais possam alterar norma votada e aprovada pelos representantes da maioria eleita pelo povo.
Na visão teórica, a resposta purista sugeriria o contrário. Deve sempre predominar a vontade da maioria.
Todavia, observada a realidade prática, com as leis malfeitas, gerando influxos danosos dos burocratas, há que se concluir, ao menos por ora, pela possibilidade da mescla de organismos populares e não-populares, permitindo a estes a busca do equilíbrio.
A solução proposta, contudo, se ressente de um defeito. Para corrigi-lo, é necessário que, no espaço interno da magistratura, não seja permitida a formação de privilégios no topo dos tribunais, enquanto a base (ou a plebe, se parecer melhor ao leitor) dos juízes continua limitada e tolhida por regras disciplinares, ditadas de cima. O grupo dos mais antigos, por estar afastado das tensões que agitam a sociedade urbana atual, não tem mostrado plena aptidão para a compreender por inteiro. É o defeito a corrigir.


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