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CORTINA DE FUMAÇA
Indústria barra restrição ao fumo com pesquisas de resultado suspeito
Flavio Florido/Folha Imagem
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O fumo passivo, de acordo com estudos da OMS, aumenta em 40% o risco de câncer de pulmão |
FABIANE LEITE
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
Esta é uma história de fraude
contra a saúde pública, corrupção
científica e impunidade. A indústria do cigarro atacou o banimento do fumo em espaços fechados
no Brasil usando como argumento científico pesquisas que ela
própria custeara.
As pesquisas, conduzidas por
professores da USP e da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
eram feitas para mostrar que a
concentração de fumaça de cigarro em recintos fechados não era
tão grande como apregoavam os
estudos independentes.
O objetivo era provar que não
havia necessidade de banir o cigarro desses ambientes, que é
possível uma "convivência em
harmonia", slogan de um programa da indústria. A Organização
Mundial de Saúde diz que essa
convivência não é possível, já que
o fumo passivo aumenta em 40%
o risco de câncer de pulmão e em
30% as doenças coronarianas.
Segundo dois especialistas brasileiros e um norte-americano ouvidos pela Folha, a conclusão de
que o nível de nicotina é baixo ou
insignificante é uma cortina de fumaça, já que o tabaco é o principal
poluidor de ambientes fechados.
De 1991 a 2000
Documentos obtidos pela Folha
mostram que essa política, iniciada em 1991 na América Latina,
continuou até 2000. Nenhum pesquisador conseguiu descobrir
quanto a indústria investiu no
projeto. O que se sabe é que o orçamento sugerido para 1994 era
de US$ 680 mil.
O desmonte da estratégia da indústria foi feita por duas frentes
de pesquisadores independentes,
cujos trabalhos foram editados
em dezembro do ano passado:
1. o cardiologista Stanton Glantz
e o clínico Joaquin Barnoya, ambos da Universidade da Califórnia
em San Francisco, na costa oeste
dos Estados Unidos, publicaram
na revista científica "Tobacco
Control" um artigo com documentos em que os fabricantes debatem como cooptar cientistas
para evitar o banimento do cigarro de ambientes fechados;
2. a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde) editou o livro "La Rentabilidad a Costa de
La Gente" ("O Lucro a Custo das
Pessoas), no qual Stella Aguinaga
Bialous e Stan Shatenstein revelam que a indústria derrotou a
tentativa dos governos de regulamentar o tabaco com fraudes e
lobby junto a políticos e à mídia.
Os trabalhos mostram que a
Philip Morris e a BAT (British
American Tobacco), grupo que
controla a Souza Cruz no Brasil,
tinham uma estratégia conjunta,
o Projeto Latino, para minar a
tentativa de banir o tabaco em sete países da América Latina: Brasil, Argentina, Chile, Venezuela,
Equador, Guatemala e Costa Rica.
À época, já estava em curso uma
política mundial da indústria para
minar a idéia de que o fumo passivo faz mal aos não-fumantes.
A diferença é que na América
Latina a ação das empresas teve
um caráter preventivo.
"O projeto foi um sucesso porque o fumo não foi banido de ambientes fechados em nenhum país
da América Latina", diz Barnoya.
Segundo ele, "o combate ao fumo
passivo é a área mais atrasada" da
saúde pública na América Latina.
"Não é como a má nutrição, que é
um problema econômico, decorrente da pobreza. Tabaco é um caso político, e a indústria venceu a
ciência nessa disputa", afirma.
Stella Aguinaga Bialous, uma
enfermeira brasileira que fez doutorado em San Francisco e é consultora da Organização Pan-Americana de Saúde, diz que a
ação da indústria foi tão eficiente
que convenceu até médicos.
"Pessoas da área da saúde acreditam que a ventilação resolve o
problema do cigarro em ambientes fechados, o que é uma mentira. A indústria conseguiu disseminar a dúvida, e isso é difícil de
reverter", diz Stella.
Os segredos da indústria do cigarro começaram a vir à luz graças ao acordo feito entre os Estados americanos e os fabricantes
em 1997. Como indenização às
fraudes que cometera contra a
saúde pública, a indústria aceitou
pagar aos governos estaduais
uma indenização de cerca de US$
368 bilhões por 25 anos (a maior
da história) e concordou em revelar todos os seus documentos.
Os textos sobre a estratégia para
a América Latina foram encontrados numa busca em mais de 40
milhões de documentos que a indústria mantém em sites na internet e num arquivo em Guildford,
nos arredores de Londres.
Os textos chocam pela franqueza com que executivos debatem
seus planos. Num dos primeiros
documentos sobre a estratégia
para combater os espaços livres
de fumo, encontrado pela Folha,
executivos das fábricas defendem
já em 1987 uma "campanha internacional coesa" para combater as
leis que limitem os espaços para
fumar. O objetivo da campanha
"é enfatizar as dúvidas que devem
ser expressas no debate científico
sobre os alegados males da fumaça de cigarro no ambiente".
Em 1988, um representante da
indústria alemã, Franz Adlkofer,
disse numa reunião em Londres
que a indústria está interessada
em "bom material para relações
públicas, não em boa ciência".
Discurso idêntico a esse direcionou o Projeto Latino. Os 15 cientistas da região eram pagos não só
para pesquisar. Eram escolhidos
pela aparência, pela habilidade de
falar bem para a televisão ou pela
capacidade de obter espaço em
jornais. Pesquisar não era a única
atribuição. Deviam divulgar artigos em revistas científicas, dar entrevistas e escrever textos em linguagem acessível.
Em seminário realizado em parceria com a Associação Brasileira
de Imprensa, no Rio de Janeiro
em 1994, a indústria fez questão
de enfatizar que o tabagismo não
era uma questão importante para
o Brasil diante de outros problemas de saúde.
Fachada acadêmica
Os textos produzidos pelos
cientistas não eram conferidos
por seus pares, como reza a tradição acadêmica, mas por um escritório de advocacia de Washington, chamado Covington & Burling. O medo era que as pesquisas
servissem de munição a advogados que processam os fabricantes.
Para que os fabricantes não aparecessem manipulando cientistas,
o que jogaria a credibilidade do
projeto no lixo, advogados repassavam o dinheiro que financiava
as pesquisas para uma entidade
que tinha ares acadêmicos, o Center for Indoor Air Research (Centro para Pesquisas sobre Ar em
Ambientes Interiores), conhecida
como Ciar, suas iniciais em inglês.
Promotores americanos descobriram que o Ciar era mais uma
fachada usada pela indústria para
que suas opiniões soassem científicas. Em 1998, o Ciar foi fechado
sob acusação de fraude.
Os estudos que o centro financiou também não passam de fraude científica, como define James
Repace, professor da escola de
medicina da Tufts University e especialista em fumo passivo.
"Se a indústria do tabaco pagou
o trabalho e o trabalho é sobre poluição ambiental de cigarro, está
garantido que é uma fraude", disse à Folha. Os únicos trabalhos
não fraudulentos, segundo ele, receberam o carimbo de "secreto da
companhia" ou "sigilo da relação
entre cliente e advogado", o que
não ocorre com nenhuma pesquisa feita no Brasil.
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