|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
INCULTA & BELA
"Não pude estar
comparecendo'
PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha
""É de manhã, vem o sol,
mas os pingos da chuva que
ontem caiu ainda estão a brilhar, ainda estão a dançar, ao
vento alegre que me traz esta
canção..."
Os mais velhos e os jovens de
bom gosto certamente conhecem. É o começo de ""Estrada
do Sol", música de Tom Jobim
e letra de Dolores Duran. As
sequências ""estão a brilhar" e
""estão a dançar" não são comuns na fala cotidiana do
Brasil. Por aqui o que se usa
mesmo é ""estão brilhando" e
""estão dançando".
Já em Portugal essa estrutura (preposição a + infinitivo)
é mais do que comum. Incomum é o gerúndio. Um diretor da TV Cultura me disse
que esteve em Portugal quando as novelas brasileiras começaram a chegar lá e viu nas
ruas -acredite se quiser-
uma passeata de protesto contra o gerúndio, abundante
nas novelas brasileiras. Temiam nossos irmãos portugueses que isso ""pegasse".
Essas estruturas, no fundo,
são equivalentes. E não
adianta esperar que brasileiros passem a dizer ""ela está a
dormir", nem que portugueses
digam ""ela está dormindo".
O fato é que de repente surgiu no Brasil a esquisita mania de usar o verbo ""estar"
seguido de outro verbo no gerúndio. Essa dupla na verdade é um trio, porque antes
vem outro verbo. Algo como
""o economista vai estar realizando uma série de palestras". O que na verdade já
poderia ser dito com apenas
um verbo (""realizará"), ou
com dois (""vai realizar"),
acaba se transformando numa perífrase (rodeio de palavras) enfadonha.
O grande problema é que isso parece chique, tem uma cara de coisa da língua formal,
culta, mas não passa de uma
grande chatice.
Uma amiga telefonou para
a central de atendimento a
clientes de um cartão de crédito. Depois de intermináveis
""a gente vai estar tentando
resolver o seu problema", ""a
senhora vai estar recebendo
um extrato", ""uma funcionária vai estar verificando", ""a
gente vai estar mandando
uma cópia para a senhora", a
funcionária perguntou: ""A senhora pode estar enviando
uma cópia do último pagamento?".
Irônica, mordaz, minha
amiga respondeu: ""Estar enviando eu não posso, mas enviar eu posso". Inútil. Pelo
que disse em seguida, parece
que a funcionária não entendeu a ironia.
Há alguns dias, um jogador
do Santos deu entrevista à rádio Jovem Pan. Trata-se de
rapaz letrado, bem falante, de
classe média alta, que estudou
em bons colégios. Feliz com
sua atuação, o jovem atleta
ofereceu os gols à mãe. ""Mande-lhe uma mensagem", propôs o radialista. O jogador declarou seu amor à genitora e
disse: ""Desculpe, mãe. Seu
aniversário foi ontem, mas eu
não pude estar comparecendo
à festa".
""Não pude estar comparecendo" é de lascar. Que tal
""Não pude comparecer"? Simples e indolor, não?
É isso. Cuidado com modismos linguísticos. Esse cacoete
já passou da fala e já frequenta a língua escrita, com ares
de coisa boa. Fuja disso!
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna
às quintas-feiras.
E-mail: inculta@uol.com.br
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|