São Paulo, quinta, 19 de fevereiro de 1998

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INCULTA & BELA
"Não pude estar comparecendo'

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha


""É de manhã, vem o sol, mas os pingos da chuva que ontem caiu ainda estão a brilhar, ainda estão a dançar, ao vento alegre que me traz esta canção..."
Os mais velhos e os jovens de bom gosto certamente conhecem. É o começo de ""Estrada do Sol", música de Tom Jobim e letra de Dolores Duran. As sequências ""estão a brilhar" e ""estão a dançar" não são comuns na fala cotidiana do Brasil. Por aqui o que se usa mesmo é ""estão brilhando" e ""estão dançando".
Já em Portugal essa estrutura (preposição a + infinitivo) é mais do que comum. Incomum é o gerúndio. Um diretor da TV Cultura me disse que esteve em Portugal quando as novelas brasileiras começaram a chegar lá e viu nas ruas -acredite se quiser- uma passeata de protesto contra o gerúndio, abundante nas novelas brasileiras. Temiam nossos irmãos portugueses que isso ""pegasse".
Essas estruturas, no fundo, são equivalentes. E não adianta esperar que brasileiros passem a dizer ""ela está a dormir", nem que portugueses digam ""ela está dormindo".
O fato é que de repente surgiu no Brasil a esquisita mania de usar o verbo ""estar" seguido de outro verbo no gerúndio. Essa dupla na verdade é um trio, porque antes vem outro verbo. Algo como ""o economista vai estar realizando uma série de palestras". O que na verdade já poderia ser dito com apenas um verbo (""realizará"), ou com dois (""vai realizar"), acaba se transformando numa perífrase (rodeio de palavras) enfadonha.
O grande problema é que isso parece chique, tem uma cara de coisa da língua formal, culta, mas não passa de uma grande chatice.
Uma amiga telefonou para a central de atendimento a clientes de um cartão de crédito. Depois de intermináveis ""a gente vai estar tentando resolver o seu problema", ""a senhora vai estar recebendo um extrato", ""uma funcionária vai estar verificando", ""a gente vai estar mandando uma cópia para a senhora", a funcionária perguntou: ""A senhora pode estar enviando uma cópia do último pagamento?".
Irônica, mordaz, minha amiga respondeu: ""Estar enviando eu não posso, mas enviar eu posso". Inútil. Pelo que disse em seguida, parece que a funcionária não entendeu a ironia.
Há alguns dias, um jogador do Santos deu entrevista à rádio Jovem Pan. Trata-se de rapaz letrado, bem falante, de classe média alta, que estudou em bons colégios. Feliz com sua atuação, o jovem atleta ofereceu os gols à mãe. ""Mande-lhe uma mensagem", propôs o radialista. O jogador declarou seu amor à genitora e disse: ""Desculpe, mãe. Seu aniversário foi ontem, mas eu não pude estar comparecendo à festa".
""Não pude estar comparecendo" é de lascar. Que tal ""Não pude comparecer"? Simples e indolor, não?
É isso. Cuidado com modismos linguísticos. Esse cacoete já passou da fala e já frequenta a língua escrita, com ares de coisa boa. Fuja disso!


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail: inculta@uol.com.br



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