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PASQUALE CIPRO NETO
"Os brasileiros poderemos pronunciar..."
Há duas semanas, ao
tratar do emprego da forma
verbal "houveram", usei a seguinte construção: "Nem Deus sabe
quando os brasileiros poderemos
pronunciar a frase...". O trecho
"os brasileiros poderemos" deixou intrigados vários leitores, que
escreveram para perguntar se essa concordância é obrigatória, facultativa ou simples resultado de
cochilo meu. Muitos leitores perguntaram se a forma correta não
seria "os brasileiros poderão...".
Vamos lá, então. Vou logo dizendo que a forma que usei é possível, mas não obrigatória. Na
verdade, usei de propósito, porque sabia que sua presença provocaria os leitores. Julgo fundamental instigar a curiosidade dos
que me lêem, que gostam (e muito) de tomar contato com estruturas pouco usuais. Ao optar por "os
brasileiros poderemos", tinha certeza de que os leitores me escreveriam para perguntar sobre o caso.
Diferentemente do que pensam
os defensores da tese de que só se
devem empregar estruturas e vocábulos usuais (como se todo leitor fosse tolo), julgo plausível, sobretudo numa coluna que trata
da língua, o emprego esporádico
do inusual, desde que, é claro, não
se transforme isso em delírio.
Posto isso, vamos ao que interessa: "os brasileiros poderemos".
Por que o verbo não foi posto na
terceira pessoa do plural ("poderão") para concordar com "os
brasileiros"? Porque a concordância não foi feita com a forma gramatical, mas com a idéia, com o
sentido. Como também sou brasileiro, incluí-me no universo representado pela expressão "os
brasileiros" e "troquei" a concordância, ou seja, não fiz o verbo
concordar com "os brasileiros",
mas com o que eu tinha em mente
("nós, os brasileiros").
O nome disso é "silepse", que
vem do grego e, segundo o "Aurélio", significa "ação de compreender". O "Houaiss" amplia um
pouco a definição etimológica
("ato de tomar em conjunto, de
abraçar, de compreender"), roborada por Celso Cunha e Lindley
Cintra ("Nova Gramática do Português Contemporâneo").
O caso que vimos é de silepse de
pessoa, já que troquei a pessoa
gramatical (terceira do plural)
imposta pela expressão "os brasileiros" pela que se refere ao que eu
tinha em mente ("nós", da primeira pessoa do plural).
Mestre Clóvis Rossi é usuário
contumaz desse processo, de que
se vale sempre que fala de seus pares, ou seja, os jornalistas. Rossi
não costuma escrever "os jornalistas julgam", "os jornalistas dizem", "os jornalistas pensam".
Em sua íntegra e ética pena, essas
construções normalmente se
transformam em "os jornalistas
julgamos", "os jornalistas dizemos", "os jornalistas pensamos".
Com isso, Rossi simplesmente deixa claro que também é jornalista
e se inclui no grupo dos que julgam, dizem, pensam etc.
A silepse de pessoa não é rara
em nosso dia-a-dia. Um caso comum é o do pronome "todos",
que volta e meia aparece ao lado
de verbos conjugados na primeira
do plural ("Todos julgamos",
"Todos queremos", "Todos sabemos" etc.), e não na terceira ("Todos julgam", "Todos querem",
"Todos sabem" etc.), como sugere
sua forma gramatical. Em "Todos
julgamos", verifica-se processo semelhante ao que há em "Os brasileiros poderemos". É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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