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São Paulo, quinta-feira, 19 de junho de 2003

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PASQUALE CIPRO NETO

"Os brasileiros poderemos pronunciar..."

Há duas semanas, ao tratar do emprego da forma verbal "houveram", usei a seguinte construção: "Nem Deus sabe quando os brasileiros poderemos pronunciar a frase...". O trecho "os brasileiros poderemos" deixou intrigados vários leitores, que escreveram para perguntar se essa concordância é obrigatória, facultativa ou simples resultado de cochilo meu. Muitos leitores perguntaram se a forma correta não seria "os brasileiros poderão...".
Vamos lá, então. Vou logo dizendo que a forma que usei é possível, mas não obrigatória. Na verdade, usei de propósito, porque sabia que sua presença provocaria os leitores. Julgo fundamental instigar a curiosidade dos que me lêem, que gostam (e muito) de tomar contato com estruturas pouco usuais. Ao optar por "os brasileiros poderemos", tinha certeza de que os leitores me escreveriam para perguntar sobre o caso.
Diferentemente do que pensam os defensores da tese de que só se devem empregar estruturas e vocábulos usuais (como se todo leitor fosse tolo), julgo plausível, sobretudo numa coluna que trata da língua, o emprego esporádico do inusual, desde que, é claro, não se transforme isso em delírio.
Posto isso, vamos ao que interessa: "os brasileiros poderemos". Por que o verbo não foi posto na terceira pessoa do plural ("poderão") para concordar com "os brasileiros"? Porque a concordância não foi feita com a forma gramatical, mas com a idéia, com o sentido. Como também sou brasileiro, incluí-me no universo representado pela expressão "os brasileiros" e "troquei" a concordância, ou seja, não fiz o verbo concordar com "os brasileiros", mas com o que eu tinha em mente ("nós, os brasileiros").
O nome disso é "silepse", que vem do grego e, segundo o "Aurélio", significa "ação de compreender". O "Houaiss" amplia um pouco a definição etimológica ("ato de tomar em conjunto, de abraçar, de compreender"), roborada por Celso Cunha e Lindley Cintra ("Nova Gramática do Português Contemporâneo").
O caso que vimos é de silepse de pessoa, já que troquei a pessoa gramatical (terceira do plural) imposta pela expressão "os brasileiros" pela que se refere ao que eu tinha em mente ("nós", da primeira pessoa do plural).
Mestre Clóvis Rossi é usuário contumaz desse processo, de que se vale sempre que fala de seus pares, ou seja, os jornalistas. Rossi não costuma escrever "os jornalistas julgam", "os jornalistas dizem", "os jornalistas pensam". Em sua íntegra e ética pena, essas construções normalmente se transformam em "os jornalistas julgamos", "os jornalistas dizemos", "os jornalistas pensamos". Com isso, Rossi simplesmente deixa claro que também é jornalista e se inclui no grupo dos que julgam, dizem, pensam etc.
A silepse de pessoa não é rara em nosso dia-a-dia. Um caso comum é o do pronome "todos", que volta e meia aparece ao lado de verbos conjugados na primeira do plural ("Todos julgamos", "Todos queremos", "Todos sabemos" etc.), e não na terceira ("Todos julgam", "Todos querem", "Todos sabem" etc.), como sugere sua forma gramatical. Em "Todos julgamos", verifica-se processo semelhante ao que há em "Os brasileiros poderemos". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras E-mail - inculta@uol.com.br


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