São Paulo, Sábado, 19 de Junho de 1999
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LETRAS JURÍDICAS

500 anos da família brasileira

WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas

Para repassar temas da família nos 500 anos da descoberta do Brasil, reli trechos sobre regime de bens no casamento, nas Ordenações Filipinas, que continuaram vigorando em nosso país quase cem anos depois da independência. Predominava a comunhão universal, salvo se os noivos contratassem solução diferente, mas o dote (valores ou bens entregues ao marido, geralmente pelos pais da noiva) era comum.
Havia alternativas curiosas. Com relação sexual, mas sem "provarem que foram recebidos à porta da igreja ou fora dela, com licença do prelado", os noivos não eram meeiros de seus bens. Entendeu-se, nos séculos 17 a 19, que a irrevogabilidade do casamento só nascia com a cópula (termo preferido nas Ordenações), depois da cerimônia religiosa, mas não antes, o que também acontecia naqueles tempos virtuosos. Nesse caso, porém, inexistiria meação dos bens. O leitor moderno não conseguiria calcular quanta tinta se gastou debatendo o assunto, mas se trata de normas acolhidas em leis atuais.
Logo depois do primeiro desembarque em Porto Seguro, apesar do rigor legal, preponderaram as uniões livres. O relacionamento dos degredados e dos dois grumetes que aqui ficaram, referidos na carta de Pero Vaz de Caminha, com mulheres índias deve ter originado as primeiras "famílias brasileiras". Até o fim do século 17, havia poucas mulheres brancas na colônia, o que explica o grande número de mamelucos, filhos de brancos com índias, sem o casamento formal.
De 1500 a 1891 o matrimônio religioso foi o único reconhecido e o único admitido para que os filhos fossem registrados na paróquia. Contudo, os filhos de pessoas não casadas entre si, ainda que portuguesas, não eram registráveis, assim como os nascidos de escravos africanos e de índios não cristianizados. O relacionamento das mulheres negras e índias com brancos gerou filhos considerados espúrios, que também não podiam ser reconhecidos. Circunstância que, aliás, não impediu o aparecimento de grandes populações mestiças, como se sabe.
No Brasil Colônia, a mulher casada não administrava seus bens, tarefa reservada ao marido. Contudo, como muitos maridos se embrenhavam em expedições ou em serviços distantes, o matriarcado autoritário também encontrou representantes vigorosas, no pleno exercício do controle do lar e de seus bens. Até 1962, porém, a lei continuou atribuindo ao marido a chefia da sociedade conjugal e a administração dos bens do casal.
Para os próximos anos, não se prevê mudança radical na família brasileira. A liberdade sexual será mantida, com métodos mais seguros, garantindo a liberdade feminina.
É provável algum retorno a formas clássicas, com e sem casamento legal, em que um dos membros do casal (geralmente a mulher) se encarregará do lar e que a monogamia - mais ética que jurídica - encontre lugar nos projetos masculinos e femininos. Claro que, com o divórcio, poderá ser uma monogamia por vez.
A projeção mais importante, para o futuro refere-se aos filhos. A paternidade e a maternidade biológicas perderão importância, em face dos modernos métodos de reprodução assistida, em laboratório. O convívio e a aceitação da unidade familiar, ainda que não biológica, deverão predominar.
A cópula, elemento fundamental do direito de família nas velhas Ordenações, terá perdido parte de seu significado, mostrando que, às vezes, a ciência prejudica aspectos positivos do direito.


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