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São Paulo, sábado, 19 de julho de 2003

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LETRAS JURÍDICAS

Restrições profissionais ao jornalismo

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

O jornal "The Independent" relacionou e a Folha publicou nesta semana 17 mentiras atribuídas à dupla Bush-Blair (reunidos anteontem para discutirem a saída da enrascada) ou a seus auxiliares por conta da ocupação militar do Iraque. É uso comum -e todo mundo sabe disso- que sempre se acha um bode expiatório para mostrar que os mentirosos foram outros, e não os líderes. O Direito, nesse campo, passou por transformação radical ao longo dos séculos. A regra, durante as monarquias absolutas e, depois, nas grandes ditaduras, era a de que o rei ou o líder não cometiam erros ("King can do no wrong", no original inglês). O direito constitucional revogou-a.
Bush e Blair como ficam na fotografia? São legalmente responsáveis pelo que disseram e pelo que fizeram, considerados os deveres de seus cargos. Quando se pensa, porém, na cobertura jornalística e na obrigação resultante da plena liberdade de informação, livre de censura, a fotografia da mídia sai pior. Bush e Blair estiveram mais para Gepettos do que para Pinóquios (Gepetto foi o marceneiro criador de Pinóquio, boneco de madeira que ganhou vida própria e cujo nariz crescia quando mentia. Ambos foram personagens imaginados pelo italiano Carlo Collodi em 1881). Acolhendo informações oficiais, sem juízo crítico aceitável, a mídia só acordou quando os objetivos militares e econômicos de conquista do Iraque estavam completados. Enfim, acordou, mas acordou tarde.
A conduta dos Gepettos e dos Pinóquios chama a atenção pelo efeito colateral da contribuição que o jornalismo deu na divulgação não-crítica das informações falsas. Há mais: a mídia internacional continua silenciando sobre os presos de Guantánamo, dois dos quais, por serem britânicos, serão provavelmente libertados depois da visita de Blair, ficando os outros submetidos a cortes militares, sob o risco de condenação à morte.
No Brasil, país em que o diploma de jornalista é exigido para o exercício profissional, a avaliação não melhora. Pergunta-se: diploma ajuda?
Sentença recente, publicada no jornal da Associação dos Juízes Federais da 3ª Região, da magistrada Carla Abrantkoski Rister, da 16ª Vara Federal, em ação civil pública movida pelo Ministério Público, diz que não. Concluiu pela dispensa do diploma, afirmando que a prática do jornalismo não se enquadra nos casos em que as qualificações profissionais estabelecidas na lei devam ser satisfeitas por meio de curso em escola exclusiva dessa profissão. Ela refere acórdão do Supremo Tribunal Federal relatado pelo ministro Thompson Flores, para quem as condições de capacidade devem funcionar como defesa social, sob preponderante interesse da sociedade.
Na atualidade, as máquinas de governo, com enorme capacidade de dominação e convencimento, exigem particular qualidade intelectual para separar o joio do trigo. O jornalismo levou meses para detectar e caracterizar as mentiras graves e para expô-las. A verdade a pesquisar, por trás da vontade dos governantes, exige capacidade imediata de compreender todos os lados dos fatos da administração antes de serem noticiados ou comentados, para assim os transmitir aos leitores, ouvintes e telespectadores. São requisitos que andam em baixa. Será bom que a experiência desse conflito sugira novos rumos e exigências para o jornalismo nacional e internacional, agora que a dúvida honesta e o juízo crítico severo voltam a ganhar corpo.


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