São Paulo, segunda-feira, 19 de dezembro de 2005

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TEMPO DAS CAVERNAS

Sem água nem luz, ex-catador de ferro-velho, de 65 anos, vive em área nobre de Ribeirão Preto

Casebre abriga ermitão no interior de SP

RICARDO GALLO
DA FOLHA RIBEIRÃO

A poucos metros do imponente edifício de estilo grego da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado), no Alto da Boa Vista, na nobre zona sul de Ribeirão Preto (314 km de SP), o tempo parou. A luz sai de uma lamparina, a água brota de uma mina e o fogo é alimentado com lenha. Ali, oculto num esconderijo, vive, miserável, um ermitão urbano.
"Vim para cá porque não tinha onde morar", diz Orlando Petreli, 65, um simpático ex-catador de ferro-velho de barbas compridas, dentes amarelados e mãos calejadas que sonha com uma casa própria. Há cerca de cinco anos, sem opções, recorreu a um casebre quase invisível na rua Doutor Fragoso, paralela à avenida Independência. Virou um homem do mato, alheio à realidade de fora da "caverna" onde vive.
Feito de madeira e coberto com lona preta, o casebre, sem portas nem janelas, passa despercebido mesmo entre os moradores da vizinhança -da rua, não é possível vê-lo. Para chegar à casa, o visitante passa por uma trilha dentro de um terreno baldio e desce um barranco escorregadio.
A casa fica num local cercado de árvores e ao lado de um córrego, afluente do ribeirão Preto. A região, uma das mais valorizadas pelo mercado imobiliário de alto padrão, tem algumas imponentes casas e vários terrenos baldios, como o ocupado por Petreli, que está em área de proteção ambiental - o terreno onde vive é público.
O ex-catador diz ter encontrado o local nos idos de 2000, quando procurava água para beber. Ele deixara a casa do irmão, no Jardim Progresso, periferia de Ribeirão, com quem vivia na ocasião. "A casa estava muito cheia, com crianças e tudo. Não dava pra morar lá e fui pra rua", diz.
O casebre é um exemplo emblemático de exclusão, localizado a poucos metros da avenida Independência, um dos principais corredores comerciais de Ribeirão, com o metro quadrado avaliado em cerca de R$ 400.
A casa não tem água potável. A comida é feita em uma panela, sobre o chão de terra batida. A água do banho é retirada de uma mina em uma caneca, que Petreli utiliza para molhar o corpo. A luz é improvisada com lamparina. De noite, as lâmpadas da Faap, cujo prédio exigiu investimento de R$ 12 milhões, ajudam na iluminação. "Mas tem uma hora em que a luz apaga, aí escurece de novo."
Ele dorme em um colchão improvisado sobre um suporte de madeira e a armação de um fogão enferrujado. O colchão, "ganhado", está encardido, assim como os cobertores. Quando chove, a pequena cama vira o único espaço da casa que não enche de água. "A água vem até aqui, ó", diz ele, apontando para o joelho. As poucas mudas de roupa, doadas, ficam no varal feito de fios.
Não menos precária é a forma como vive. O almoço e o jantar são feitos com alimentos doados por conhecidos ou pelo irmão, Luís, que o visita às vezes. Da prefeitura, ganhou, cerca de um ano atrás, uma cesta básica. O cardápio varia pouco: arroz, feijão e, raramente, mingau. E carne, qual foi a última vez? "Faz tempo." Pedaços de madeira no chão fazem as vezes de fogão. Os dentes ele escova só com água, pois não tem creme dental.
Mesmo com pouca comida, ele divide o prato com quatro gatos ("Minigato", "Tiquinho", "Calango" e Chouriço") e três cachorros ("Negrinho, "Branco" e "Tilica"). Na última terça-feira, quando a Folha o visitou, ele estava preocupado com o aspecto raquítico dos animais: "Eles estão comendo muito mal", disse o ermitão.
Orlando afirma não ter mais condições de trabalhar, o que lhe torna refém do assistencialismo público ou da boa vontade da população que o conhece. Estão distantes na memória os tempos em que atuava como catador de ferro-velho, o que lhe permitia juntar algum dinheiro. "Mas começaram a pagar pouco, aí parei de recolher", disse. Com medo recorrente de furtos (que citou insistentemente), o ermitão urbano prefere não sair de casa.
Lá dentro, mata o tempo cuidando dos bichos e da casa. A última vez em que assistiu TV foi em 2000. O ex-catador, que "sabe ler mas não escrever", tem duas lembranças: "Passava "Terra Nostra" [exibida em 2000] e Silvio Santos. Eu gostava do Silvio Santos", diz. "Sinto falta, mas aqui não posso pôr TV. "Eles" roubam."
Da vida pessoal, Orlando fala pouco. Diz que nasceu em Orlândia e se separou da mulher há mais de 20 anos, porque ela tinha "problema na cabeça". Na ocasião, morava em Uberaba (MG) e trabalhava com o irmão.
Do casamento nasceram três filhos, que o ermitão deixou com familiares da ex-mulher. O nome deles, ele não se lembra. "Saí de casa quando eram pequenininhos. Hoje deve estar tudo homem moço", diz. O sonho dele é conseguir um terreno para deixar o casebre e a condição de ermitão. "Queria receber um terreninho para morar, só isso."


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