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TEMPO DAS CAVERNAS
Sem água nem luz, ex-catador de ferro-velho, de 65 anos, vive em área nobre de Ribeirão Preto
Casebre abriga ermitão no interior de SP
RICARDO GALLO
DA FOLHA RIBEIRÃO
A poucos metros do imponente
edifício de estilo grego da Faap
(Fundação Armando Álvares
Penteado), no Alto da Boa Vista,
na nobre zona sul de Ribeirão
Preto (314 km de SP), o tempo parou. A luz sai de uma lamparina, a
água brota de uma mina e o fogo é
alimentado com lenha. Ali, oculto
num esconderijo, vive, miserável,
um ermitão urbano.
"Vim para cá porque não tinha
onde morar", diz Orlando Petreli,
65, um simpático ex-catador de
ferro-velho de barbas compridas,
dentes amarelados e mãos calejadas que sonha com uma casa própria. Há cerca de cinco anos, sem
opções, recorreu a um casebre
quase invisível na rua Doutor Fragoso, paralela à avenida Independência. Virou um homem do mato, alheio à realidade de fora da
"caverna" onde vive.
Feito de madeira e coberto com
lona preta, o casebre, sem portas
nem janelas, passa despercebido
mesmo entre os moradores da vizinhança -da rua, não é possível
vê-lo. Para chegar à casa, o visitante passa por uma trilha dentro
de um terreno baldio e desce um
barranco escorregadio.
A casa fica num local cercado de
árvores e ao lado de um córrego,
afluente do ribeirão Preto. A região, uma das mais valorizadas
pelo mercado imobiliário de alto
padrão, tem algumas imponentes
casas e vários terrenos baldios, como o ocupado por Petreli, que está em área de proteção ambiental
- o terreno onde vive é público.
O ex-catador diz ter encontrado
o local nos idos de 2000, quando
procurava água para beber. Ele
deixara a casa do irmão, no Jardim Progresso, periferia de Ribeirão, com quem vivia na ocasião.
"A casa estava muito cheia, com
crianças e tudo. Não dava pra morar lá e fui pra rua", diz.
O casebre é um exemplo emblemático de exclusão, localizado a
poucos metros da avenida Independência, um dos principais
corredores comerciais de Ribeirão, com o metro quadrado avaliado em cerca de R$ 400.
A casa não tem água potável. A
comida é feita em uma panela, sobre o chão de terra batida. A água
do banho é retirada de uma mina
em uma caneca, que Petreli utiliza
para molhar o corpo. A luz é improvisada com lamparina. De
noite, as lâmpadas da Faap, cujo
prédio exigiu investimento de R$
12 milhões, ajudam na iluminação. "Mas tem uma hora em que a
luz apaga, aí escurece de novo."
Ele dorme em um colchão improvisado sobre um suporte de
madeira e a armação de um fogão
enferrujado. O colchão, "ganhado", está encardido, assim como
os cobertores. Quando chove, a
pequena cama vira o único espaço da casa que não enche de água.
"A água vem até aqui, ó", diz ele,
apontando para o joelho. As poucas mudas de roupa, doadas, ficam no varal feito de fios.
Não menos precária é a forma
como vive. O almoço e o jantar
são feitos com alimentos doados
por conhecidos ou pelo irmão,
Luís, que o visita às vezes. Da prefeitura, ganhou, cerca de um ano
atrás, uma cesta básica. O cardápio varia pouco: arroz, feijão e, raramente, mingau. E carne, qual
foi a última vez? "Faz tempo." Pedaços de madeira no chão fazem
as vezes de fogão. Os dentes ele escova só com água, pois não tem
creme dental.
Mesmo com pouca comida, ele
divide o prato com quatro gatos
("Minigato", "Tiquinho", "Calango" e Chouriço") e três cachorros
("Negrinho, "Branco" e "Tilica").
Na última terça-feira, quando a
Folha o visitou, ele estava preocupado com o aspecto raquítico dos
animais: "Eles estão comendo
muito mal", disse o ermitão.
Orlando afirma não ter mais
condições de trabalhar, o que lhe
torna refém do assistencialismo
público ou da boa vontade da população que o conhece. Estão distantes na memória os tempos em
que atuava como catador de ferro-velho, o que lhe permitia juntar algum dinheiro. "Mas começaram a pagar pouco, aí parei de
recolher", disse. Com medo recorrente de furtos (que citou insistentemente), o ermitão urbano
prefere não sair de casa.
Lá dentro, mata o tempo cuidando dos bichos e da casa. A última vez em que assistiu TV foi em
2000. O ex-catador, que "sabe ler
mas não escrever", tem duas lembranças: "Passava "Terra Nostra"
[exibida em 2000] e Silvio Santos.
Eu gostava do Silvio Santos", diz.
"Sinto falta, mas aqui não posso
pôr TV. "Eles" roubam."
Da vida pessoal, Orlando fala
pouco. Diz que nasceu em Orlândia e se separou da mulher há
mais de 20 anos, porque ela tinha
"problema na cabeça". Na ocasião, morava em Uberaba (MG) e
trabalhava com o irmão.
Do casamento nasceram três filhos, que o ermitão deixou com
familiares da ex-mulher. O nome
deles, ele não se lembra. "Saí de
casa quando eram pequenininhos. Hoje deve estar tudo homem moço", diz. O sonho dele é
conseguir um terreno para deixar
o casebre e a condição de ermitão.
"Queria receber um terreninho
para morar, só isso."
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