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Sem cura, paciente aguarda morte longe da UTI
DA REPORTAGEM LOCAL
Sônia não quer morrer sem antes reencontrar João, um namorado que ela abandonou depois de
ficar doente. Mesmo sem condições de sair da cama, a escriturária de 45 anos faz escova no cabelo
diariamente e não dispensa o batom e o rímel.
Doente terminal de câncer no
reto, ela oscila entre momentos de
consciência e de confusão mental.
Na última quinta, queixava-se à
médica de que estava cansada de
tomar chá. Queria um copo de
cerveja, o que foi permitido.
O tumor já tomou conta de toda
sua região pélvica. Só a morfina
controla a sua dor. Ao ser questionada sobre qual desejo ainda não
foi realizado, ela não titubeia:
"Queria ter tido um filho. É muito
ruim estar sozinha", diz ela, que é
filha única.
No quarto ao lado de Sônia está
a mineira Maria da Piedade, 48,
acompanhando o marido João
Aragão, 55, que luta há um ano e
meio contra um câncer na laringe,
que já atingiu o olho esquerdo.
Estão casados há três anos.
Em novembro de 2003, João teve de esvaziar as cordas vocais, fez
uma traqueotomia e já não fala
mais. Até dezembro do ano passado, comunicava-se por meio de
bilhetes. À psicóloga, ele escreveu
que "se não fosse ela [Maria] já teria dado fim a esse sofrimento".
No último bilhete endereçado à
mulher, ele diz: "Te amo. Você
não sabe o quanto me dói ver você
tão perto e eu já tão longe". Agora,
João só se comunica movimentando o olho direito. "Rezo para
que Deus o leve durante uma parada cardiorrespiratória. Hemorragia seria muito cruel."
Florinda Ribeiro, 52, não sabe
quanto tempo ainda lhe resta de
vida mas não abandona o sorriso
e a dedicação às plantas. As dores
provocadas pelo câncer da mama
com metástase são aliviadas com
morfina. Também necessita de
anticoagulantes porque sofreu
um embolia arterial que provocou gangrena no seu pé.
Casa de apoio
Em comum, as três histórias
reúnem protagonistas de uma
doença incurável, que decidiram
morrer longe das UTIs. Estão
"hospedados" em uma casa de
apoio de cuidados paliativos ligada ao Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo.
Ali nada lembra um hospital. A
casa, uma antiga residência dos
barões do café localizada na Aclimação (zona sul), é arejada e iluminada. Não são feitos procedimentos invasivos e nenhum
doente é entubado. Há apenas
oxigênio, soro e remédios para
evitar a dor. Os pacientes têm direito a acompanhante.
Segundo Dalva Yukie Matsumoto, oncologista e coordenadora do projeto, todo o tratamento é
discutido com o paciente e a família. "Independentemente da falta
de cura, trabalhamos para que o
paciente tenha o máximo de qualidade de vida até o final da sua
existência. Ele é estimulado a participar das decisões clínicas."
Matsumoto conta que o custo
de cada paciente na casa é um terço daquele gasto com doentes
com mesmo perfil internado no
hospital. Em seis meses de funcionamento, 24 das 28 pessoas que
passaram pelo local já morreram.
A exemplo da casa, existem outros 30 serviços de cuidados paliativos no país. Um deles, do Hospital do Servidor Estadual, usa a
mesma filosofia para tratar o paciente em casa. "Deixar o paciente
isolado da família, num leito de
UTI, só aumenta o sofrimento",
diz a médica Maria Goretti Maciel, coordenadora do programa.
Segundo ela, o paciente é informado sobre a impossibilidade de
cura da doença e quando necessita de cuidados especiais para o
controle dos sintomas é encaminhado ao ambulatório do hospital. "Digo que ele não vai ficar
bom, mas iremos fazer de tudo
para ele ficar bem", diz.
A família também recebe apoio
psicológico durante o processo de
terminalidade da doença e após a
morte do paciente. "O luto elaborado se torna mais suave."
O hospital Emílio Ribas, de São
Paulo, mantém um serviço de cuidados paliativos para os doentes
de Aids em fase terminal desde 99.
Segundo a terapeuta ocupacional Mônica Estukue de Queiroz,
responsável pelo programa, o lema é aceitar a morte como um
processo natural, "sem adiá-la
nem antecipá-la". Durante esse
processo, o paciente é incentivado
a resolver conflitos familiares e a
satisfazer possíveis desejos.
"É comum eles pedirem sorvete
de chocolate, cachorro-quente,
coisas que comiam na infância",
conta Queiroz.
Nesta semana, os paliativistas,
como são chamados os profissionais que atuam com cuidados paliativos, criam a Academia Nacional de Cuidados Paliativos, uma
associação que vai lutar para que
a atividade seja reconhecida como especialidade médica.
O foco do trabalho é o alívio da
dor física, psíquica, social e espiritual do doente terminal. Não se
investe em terapias de "cura"
diante da morte iminente e inevitável. A equipe é sempre multidisciplinar. (CLÁUDIA COLLUCCI)
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