São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

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Sem cura, paciente aguarda morte longe da UTI

DA REPORTAGEM LOCAL

Sônia não quer morrer sem antes reencontrar João, um namorado que ela abandonou depois de ficar doente. Mesmo sem condições de sair da cama, a escriturária de 45 anos faz escova no cabelo diariamente e não dispensa o batom e o rímel.
Doente terminal de câncer no reto, ela oscila entre momentos de consciência e de confusão mental. Na última quinta, queixava-se à médica de que estava cansada de tomar chá. Queria um copo de cerveja, o que foi permitido.
O tumor já tomou conta de toda sua região pélvica. Só a morfina controla a sua dor. Ao ser questionada sobre qual desejo ainda não foi realizado, ela não titubeia: "Queria ter tido um filho. É muito ruim estar sozinha", diz ela, que é filha única.
No quarto ao lado de Sônia está a mineira Maria da Piedade, 48, acompanhando o marido João Aragão, 55, que luta há um ano e meio contra um câncer na laringe, que já atingiu o olho esquerdo. Estão casados há três anos.
Em novembro de 2003, João teve de esvaziar as cordas vocais, fez uma traqueotomia e já não fala mais. Até dezembro do ano passado, comunicava-se por meio de bilhetes. À psicóloga, ele escreveu que "se não fosse ela [Maria] já teria dado fim a esse sofrimento".
No último bilhete endereçado à mulher, ele diz: "Te amo. Você não sabe o quanto me dói ver você tão perto e eu já tão longe". Agora, João só se comunica movimentando o olho direito. "Rezo para que Deus o leve durante uma parada cardiorrespiratória. Hemorragia seria muito cruel."
Florinda Ribeiro, 52, não sabe quanto tempo ainda lhe resta de vida mas não abandona o sorriso e a dedicação às plantas. As dores provocadas pelo câncer da mama com metástase são aliviadas com morfina. Também necessita de anticoagulantes porque sofreu um embolia arterial que provocou gangrena no seu pé.


Casa de apoio
Em comum, as três histórias reúnem protagonistas de uma doença incurável, que decidiram morrer longe das UTIs. Estão "hospedados" em uma casa de apoio de cuidados paliativos ligada ao Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo.
Ali nada lembra um hospital. A casa, uma antiga residência dos barões do café localizada na Aclimação (zona sul), é arejada e iluminada. Não são feitos procedimentos invasivos e nenhum doente é entubado. Há apenas oxigênio, soro e remédios para evitar a dor. Os pacientes têm direito a acompanhante.
Segundo Dalva Yukie Matsumoto, oncologista e coordenadora do projeto, todo o tratamento é discutido com o paciente e a família. "Independentemente da falta de cura, trabalhamos para que o paciente tenha o máximo de qualidade de vida até o final da sua existência. Ele é estimulado a participar das decisões clínicas."
Matsumoto conta que o custo de cada paciente na casa é um terço daquele gasto com doentes com mesmo perfil internado no hospital. Em seis meses de funcionamento, 24 das 28 pessoas que passaram pelo local já morreram.
A exemplo da casa, existem outros 30 serviços de cuidados paliativos no país. Um deles, do Hospital do Servidor Estadual, usa a mesma filosofia para tratar o paciente em casa. "Deixar o paciente isolado da família, num leito de UTI, só aumenta o sofrimento", diz a médica Maria Goretti Maciel, coordenadora do programa.
Segundo ela, o paciente é informado sobre a impossibilidade de cura da doença e quando necessita de cuidados especiais para o controle dos sintomas é encaminhado ao ambulatório do hospital. "Digo que ele não vai ficar bom, mas iremos fazer de tudo para ele ficar bem", diz.
A família também recebe apoio psicológico durante o processo de terminalidade da doença e após a morte do paciente. "O luto elaborado se torna mais suave."
O hospital Emílio Ribas, de São Paulo, mantém um serviço de cuidados paliativos para os doentes de Aids em fase terminal desde 99.
Segundo a terapeuta ocupacional Mônica Estukue de Queiroz, responsável pelo programa, o lema é aceitar a morte como um processo natural, "sem adiá-la nem antecipá-la". Durante esse processo, o paciente é incentivado a resolver conflitos familiares e a satisfazer possíveis desejos.
"É comum eles pedirem sorvete de chocolate, cachorro-quente, coisas que comiam na infância", conta Queiroz.
Nesta semana, os paliativistas, como são chamados os profissionais que atuam com cuidados paliativos, criam a Academia Nacional de Cuidados Paliativos, uma associação que vai lutar para que a atividade seja reconhecida como especialidade médica.
O foco do trabalho é o alívio da dor física, psíquica, social e espiritual do doente terminal. Não se investe em terapias de "cura" diante da morte iminente e inevitável. A equipe é sempre multidisciplinar. (CLÁUDIA COLLUCCI)

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