São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"MENINA DE OURO"

Mulheres lutam contra a resistência familiar, o preconceito e a falta de dinheiro para praticar o esporte

Brasileiras enfrentam preconceito pelo boxe

DÉBORA YURI
DA REVISTA

"Quando eu tinha dez anos, pedi ao meu pai uma luva de boxe. Ele me deu uma surra e uma Barbie", conta a pugilista Tatiana Cozaciski, 24, a Lalla, o corpo coberto por 39 tatuagens que da imagem vão do Sagrado Coração de Maria à gatinha meiga Hello Kitty. Para pagar a passagem de ônibus e continuar treinando, faz bicos como segurança de casa noturna. Os pais, um mecânico e uma dona-de-casa, ainda condenam a paixão da filha pelo ringue.
A violência fez do boxe um campeão em despertar repulsa, e o desconforto costuma aumentar quando a luta envolve duas mulheres. Além de oferecer zero de glamour e dinheiro, o esporte (esporte?) em questão costuma deixar marcas como hematomas, cicatrizes e ossos quebrados.
Num país em que o futebol é tudo, mas as mulheres que o praticam ainda recebem risadinhas de escárnio, o que dizer de meninas com luva e capacete?
Responde a advogada Carolina Marques Barge Capecce, 40, mãe de Loren, 16, que pratica a luta há um ano e meio: "No começo, foi um sufoco. É duro ver sua filha chegando em casa com o olhinho roxo, o nariz sangrando."
Loren mora com os pais na Vila Clementino (zona sul), cursa o segundo ano do ensino médio e faz planos de ser bióloga. Começou a treinar boxe porque um problema na perna impediu que seguisse jogando handebol. Tomou gosto e agora se prepara para a seletiva do Pan-Americano de Buenos Aires, em março.
"Eu me apaixonei pelo boxe, é muita adrenalina. Mas já apanhei muito. O nariz, ainda não quebrei", diz a lutadora. A adolescente se define como "peso galo" (até 54 kg), embora não existam mais nomes para as categorias no pugilismo feminino.
Enquanto o boxe masculino rende contratos milionários, publicidade, transmissões campeãs de audiência na TV e pencas de heróis e anti-heróis, o feminino, praticado há menos tempo, acostumou-se a ser deixado em segundo plano.
Neste ano, porém, as obscuras boxeadoras ganharam os holofotes graças a um filme indicado a sete Oscar, um dos favoritos na cerimônia que acontece no próximo domingo.
"Menina de Ouro" traz Hilary Swank, a caminho de ganhar sua segunda estatueta de melhor atriz, como Maggie Fitzgerald, garçonete pobre e solitária que tem no boxe seu único sonho. Indicado como melhor ator e diretor, Clint Eastwood é o técnico amargurado que, sob protestos, aceita ser seu treinador.
Nos EUA, maior centro do boxe profissional e grande potência do esporte, o pugilismo feminino vez ou outra dá lampejos de sair do ostracismo: o país tem algumas estrelas com nome e, principalmente, sobrenome (leia texto ao lado). No Brasil, ele é ainda incipiente. As atletas têm pouco apoio, dificilmente arrumam patrocinadores, e as lutas não dão retorno financeiro.

Razões
Apesar de muitos contras e poucos prós, há cada vez mais mulheres pugilistas no país -e ninguém sabe explicar por quê. "Nos últimos dois anos, o número de boxeadoras competitivas quase triplicou. No Campeonato Brasileiro de 2002, o primeiro, havia pouco mais de cem. Hoje, são quase 500", diz Luiz Claudio Boselli, presidente da Confederação Brasileira de Boxe.
O perfil básico das praticantes: estudante do ensino médio, de classe social baixa, que enfrenta resistência da família no começo. "Nas academias de elite, o boxe recreativo tem feito sucesso porque melhora o condicionamento físico e alivia o estresse, mas o boxe carrega o estigma de ser violento, e a mulher ainda é vista como sexo frágil", diz Maria Aparecida de Oliveira, 48, presidente da Federação de Boxe do Estado de São Paulo e ex-diretora de boxe feminino da confederação.
"Luto para ter uma renda melhor e ajudar a minha família. Não sonho com fama, mas com uma vida melhor", explica Ana Paula Lúcio dos Santos, 28, reputada como a melhor lutadora do Brasil, medalha de bronze no Mundial da Turquia, em 2002.
Arranjar técnico também pode ser difícil. A ex-modelo Adriana Salles, 35, uma das poucas boxeadoras profissionais do Brasil (calcula-se que existam menos de dez), lembra que, como a protagonista do filme de Clint Eastwood, "ralou" para arrumar um.
"Chorei muito no cinema, me vi na tela. Eu procurava treinador em academia e nenhum olhava na minha cara. Diziam: "Não treino mulher, muito menos modelo". Até que um me falou: "Menina, vou ter que te ensinar a bater e não apanhar'", conta.
Adriana está na faixa das atletas mais maduras, assim como a boxeadora amadora Duda Jankovich, 28, que nasceu na Iugoslávia e mora no Brasil há cinco anos.
"Na primeira vez, apanhei feito um cão, mas nem por isso desanimei. Hoje sou boa naquilo que faço. Não sei cozinhar, mas luto bem. Mas uma coisa eu aprendi com o boxe: Nunca dê as costas a um adversário".

Texto Anterior: Mortes
Próximo Texto: Pugilistas têm de se adaptar para conseguir luta
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.