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JUVENTUDE ENCARCERADA
Bairro, que abriga unidade, teme pelas constantes rebeliões e fugas diárias
Febem muda vida de vizinhos e deixa o Tatuapé em convulsão permanente
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
A pizzaria Dei Cugini ("dos primos", em italiano) serve "a melhor pizza da zona leste", segundo
os aficionados. Até o governador
Geraldo Alckmin (PSDB) já jantou lá. Paredes de tijolinho aparente e som ao vivo, uma trilha romântica que mistura Djavan, Ivan
Lins e Milton Nascimento dão o
tom do ambiente. A tranqüilidade
contrasta com o hiperativo quarteirão logo abaixo, onde fica a Febem do Tatuapé.
Exemplo: troca de turno da tropa de choque, terça-feira, 23h, três
caminhões avançam pela avenida
Celso Garcia, entram na rua da favela que ladeia a instituição e, por
um portão, despejam seu conteúdo de soldados e cavalos. Pela
porta principal, policiais atiçam
as montarias e saem a galope do
complexo. "Hoje pelo menos não
aconteceu nada aqui", comemora
o soldado em retirada.
Desde o início do ano, o bairro
com ares de cidade do interior está convulsionado por um estado
de rebelião permanente. "A imprensa só noticia quando fogem
centenas, como aconteceu no dia
10 de março, quando 307 escaparam da unidade para as ruas, aterrorizando a vizinhança. Mas as
fugas são quase diárias, e estão
deixando o Tatuapé com os nervos à flor da pele", diz o empresário Luiz Carlos Modugno.
A correria dos meninos para fugir da Febem, dos moradores para fugir dos meninos, os tiros e os
helicópteros levaram a comerciante Marli de Oliveira a descrever o cenário do bairro como "um
misto de São Silvestre e Vietnã".
"Eu já encomendei minha arma", diz um morador, espécie de
xerife civil, sob a condição de não
ser identificado. "Eu não quero
usá-la, mas, se invadirem minha
casa, ameaçarem minha família,
quero o direito de me defender."
A população quer a desativação
da Febem. Cobra do governador
Geraldo Alckmin a imediata aplicação da lei número 10.760, de 23
de janeiro de 2001, assinada por
ele mesmo, que cria o Parque Estadual do Belém em área em que
está instalada a Unidade da Febem do Tatuapé. Quer que os jovens internados na instituição sejam levados para bem longe.
Taça roubada
Nem sempre foi assim. O administrador de empresas Norberto
Mensório, 53, lembra-se de um
episódio de sua infância, quando
o time dos meninos do bairro foi
até a Febem do Tatuapé para disputar uma final de campeonato
de futebol. No campo adversário,
os garotos da instituição.
"A gente ganhou, mas eles roubaram a nossa taça", conta, divertindo-se. Mensório freqüentava a
Febem, então chamada de Instituto Modelo de Menores. Nadava
na piscina e disputava peladas nas
quadras do complexo.
Outra moradora, a assistente
social Eliane (ela não quis declinar seu nome completo), 45, é filha de uma ex-professora da Febem. "Minha mãe deu aulas durante oito anos lá. Eu era de um
grupo de bandeirantes que ia fazer atividade social na Febem. Toda festa junina, as meninas bandeirantes iam dançar quadrilha
com os meninos da instituição.
Mas havia apenas 300 meninos,
de 7 a 14 anos", lembra.
Hoje, são 1.900 os internos na
unidade do Tatuapé, uma construção arruinada por seguidos
motins, em que se movem educadores e agentes de segurança
inexperientes contratados em fevereiro, depois que o presidente
da Febem e secretário da Justiça e
Defesa da Cidadania, Alexandre
de Moraes (PFL), demitiu 1.751
funcionários antigos, acusados de
maus-tratos aos adolescentes.
Descontrolada, a unidade tornou-se porosa às fugas, que se sucedem arremessando nas ruas os
garotos que o Tatuapé não quer.
Até a festa pelo dia de são José, o
santo operário padroeiro do bairro, que deveria acontecer ontem,
receava-se ameaçada pelos jovens
da Febem. "Já teve inclusive tiroteio na igreja, por que não poderia
acontecer de novo?", pergunta
Maria Luíza Borgonovo, que mora a cem metros da instituição.
Na sexta-feira, tão logo anoiteceu e apesar do início da remoção
de jovens para o município de Tupi Paulista (663 km de São Paulo),
as ruas do bairro esvaziaram-se.
As crianças não brincam mais a
céu aberto nem nas vilas. Sempre
há a ameaça de uma nova rebelião, difundida boca a boca entre
os vizinhos. Na pizzaria "dos primos", o cantor ao vivo canta baladas românticas para as dezenas
de mesas vazias.
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