São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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JUVENTUDE ENCARCERADA

Bairro, que abriga unidade, teme pelas constantes rebeliões e fugas diárias

Febem muda vida de vizinhos e deixa o Tatuapé em convulsão permanente

LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

A pizzaria Dei Cugini ("dos primos", em italiano) serve "a melhor pizza da zona leste", segundo os aficionados. Até o governador Geraldo Alckmin (PSDB) já jantou lá. Paredes de tijolinho aparente e som ao vivo, uma trilha romântica que mistura Djavan, Ivan Lins e Milton Nascimento dão o tom do ambiente. A tranqüilidade contrasta com o hiperativo quarteirão logo abaixo, onde fica a Febem do Tatuapé.
Exemplo: troca de turno da tropa de choque, terça-feira, 23h, três caminhões avançam pela avenida Celso Garcia, entram na rua da favela que ladeia a instituição e, por um portão, despejam seu conteúdo de soldados e cavalos. Pela porta principal, policiais atiçam as montarias e saem a galope do complexo. "Hoje pelo menos não aconteceu nada aqui", comemora o soldado em retirada.
Desde o início do ano, o bairro com ares de cidade do interior está convulsionado por um estado de rebelião permanente. "A imprensa só noticia quando fogem centenas, como aconteceu no dia 10 de março, quando 307 escaparam da unidade para as ruas, aterrorizando a vizinhança. Mas as fugas são quase diárias, e estão deixando o Tatuapé com os nervos à flor da pele", diz o empresário Luiz Carlos Modugno.
A correria dos meninos para fugir da Febem, dos moradores para fugir dos meninos, os tiros e os helicópteros levaram a comerciante Marli de Oliveira a descrever o cenário do bairro como "um misto de São Silvestre e Vietnã".
"Eu já encomendei minha arma", diz um morador, espécie de xerife civil, sob a condição de não ser identificado. "Eu não quero usá-la, mas, se invadirem minha casa, ameaçarem minha família, quero o direito de me defender."
A população quer a desativação da Febem. Cobra do governador Geraldo Alckmin a imediata aplicação da lei número 10.760, de 23 de janeiro de 2001, assinada por ele mesmo, que cria o Parque Estadual do Belém em área em que está instalada a Unidade da Febem do Tatuapé. Quer que os jovens internados na instituição sejam levados para bem longe.

Taça roubada
Nem sempre foi assim. O administrador de empresas Norberto Mensório, 53, lembra-se de um episódio de sua infância, quando o time dos meninos do bairro foi até a Febem do Tatuapé para disputar uma final de campeonato de futebol. No campo adversário, os garotos da instituição.
"A gente ganhou, mas eles roubaram a nossa taça", conta, divertindo-se. Mensório freqüentava a Febem, então chamada de Instituto Modelo de Menores. Nadava na piscina e disputava peladas nas quadras do complexo.
Outra moradora, a assistente social Eliane (ela não quis declinar seu nome completo), 45, é filha de uma ex-professora da Febem. "Minha mãe deu aulas durante oito anos lá. Eu era de um grupo de bandeirantes que ia fazer atividade social na Febem. Toda festa junina, as meninas bandeirantes iam dançar quadrilha com os meninos da instituição. Mas havia apenas 300 meninos, de 7 a 14 anos", lembra.
Hoje, são 1.900 os internos na unidade do Tatuapé, uma construção arruinada por seguidos motins, em que se movem educadores e agentes de segurança inexperientes contratados em fevereiro, depois que o presidente da Febem e secretário da Justiça e Defesa da Cidadania, Alexandre de Moraes (PFL), demitiu 1.751 funcionários antigos, acusados de maus-tratos aos adolescentes.
Descontrolada, a unidade tornou-se porosa às fugas, que se sucedem arremessando nas ruas os garotos que o Tatuapé não quer.
Até a festa pelo dia de são José, o santo operário padroeiro do bairro, que deveria acontecer ontem, receava-se ameaçada pelos jovens da Febem. "Já teve inclusive tiroteio na igreja, por que não poderia acontecer de novo?", pergunta Maria Luíza Borgonovo, que mora a cem metros da instituição.
Na sexta-feira, tão logo anoiteceu e apesar do início da remoção de jovens para o município de Tupi Paulista (663 km de São Paulo), as ruas do bairro esvaziaram-se. As crianças não brincam mais a céu aberto nem nas vilas. Sempre há a ameaça de uma nova rebelião, difundida boca a boca entre os vizinhos. Na pizzaria "dos primos", o cantor ao vivo canta baladas românticas para as dezenas de mesas vazias.

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