São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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JUVENTUDE ENCARCERADA

Moradores da região do complexo do Tatuapé relatam os dias posteriores às últimas fugas

"Não tenho coragem nem de pôr o lixo na rua"

DA REPORTAGEM LOCAL

Terror, crianças traumatizadas, contatos imediatos de primeiro grau com os foragidos da Febem. Estes foram os assuntos abordados na reunião promovida pela Folha, na última terça-feira, no plantão de vendas de um empreendimento imobiliário do Tatuapé. Trinta e oito cidadãos participaram contando as experiências. Leia trechos abaixo. (LC)

 

Na minha loja [butique e cabeleireiro], hoje, não entrou ninguém. Antes dessa crise, não tinha hora nem para eu ir almoçar. Como eu vou pagar meu aluguel? Eu não sei. A luz? Não sei. Na quinta, por volta das 11 da noite, meu marido ia fechar as janelas da casa, quando viu uns 30 entrando correndo na vila, um misto de São Silvestre e Vietnã. O vigia gritou: "Vão embora." Eles o esfaquearam na mão. Na sexta-feira, pegaram dois menores enfiados no bueiro. Eu ouvi o grito de um deles chamando: "Tia, me ajuda aqui a tirar a tampa. Está muito quente aqui." Não sei quem ligou para a polícia, que foi buscar os rapazes. Ver aqueles homens saindo do chão me deixou arrepiada até a raiz do cabelo. Quando a polícia levou os dois, eu só pensava que talvez aparecessem outros por dentro do esgoto. Dali a pouco, o meu marido olhou na rua de cima e tinha quatro saindo de dentro de um outro bueiro. Eles andam pelo esgoto que nem bicho. Na minha vila, eles não conseguiram entrar pelo esgoto, porque a gente mandou arrumar os canos e colocou grades de ferro com correntes na boca dos bueiros. Antigamente, os menores entravam pelo esgoto e saíam na Marginal Tietê. Agora, fecharam essa passagem e eles saem diretamente nas ruas. Marli Helena de Oliveira, comerciante
Foi uma confusão como de saída de estádio. Os 200 fugitivos vinham pela rua e todo mundo fugia correndo só de ver os moleques. Eles estavam com o uniforme da Febem: sandálias havaianas novinhas em folha, calça e camisa de moleton azul. No meio da fuga, iam tirando as calças e jogando as sandálias fora. Os chinelos deles, que recolhemos, eram tamanho 42-44. Por baixo, vestiam bermudas. Aí, os caras iam roubando tênis de quem passava na frente deles. A minha noiva estava chegando em casa. Vinha com a filha dela, de 11 anos. A menina desceu. Quando minha noiva percebeu a confusão, mandou a filha entrar correndo em casa. Então, 30 garotos cercaram o carro. A filha gritava: "Mamãe, mamãe." Foi nessa hora que eu fui para cima dos moleques e tomei uma "naifada" [gíria que significa "facada"]. A população dos prédios ajudou muito. Da sacada dos apartamentos, apontava onde os moleques estavam. Tipo assim: "Na casa 7 tem gente!" Foi apoio total. O pessoal iluminava as casas com lanternas e com feixes de laser, apontando os invasores. Luiz Carlos Modugno, empresário
No dia 26 de janeiro, eu estava na casa da minha madrinha com o marido dela, a minha esposa e duas crianças de menos de três anos, quando começou a confusão. Eu tentei fechar a porta, mas não deu tempo. No empurra-empurra, pela fresta da porta, um dos caras enfiou uma arma e encostou na minha cabeça. Tentei me passar por um deles, um vagabundo, por assim dizer. "Olha meu, eu não posso ter polícia dentro de casa". "Ah, tá bom", disse um deles e foi embora. Mas nisso uma das crianças sumiu. A gente saiu gritando, procurando. Nesse ponto, os menores até que foram bonzinhos e começaram a procurar também. Eles gritavam junto o nome do menino. Corre aqui, corre dali, um sufoco. E nada. Quando saiu todo mundo da casa, a mãe achou o menino escondido debaixo de uma piscina de bolinha. Ele achava que eu tinha sido assassinado e só falava uma coisa: "Mataram o Rodrigo, mataram o Rodrigo."
Rodrigo Ribeiro Barbosa,
comerciante
Sábado agora, coloquei um portão alto na minha casa. Porque na quinta passada, três meninos entraram na minha casa e pediram para se esconder. Quando a polícia chegou, eles fugiram. Eu falei para o guarda: "Atira na perna de um deles, assim pelo menos um o senhor pega." Ele não atirou. Eu tenho três filhos adolescentes que não deixo mais saírem à noite. Não levo mais meu cachorro para passear. Nem coragem para colocar o lixo na rua eu tenho. Para sair de casa, eu subo até a janela, olho se a rua está tranqüila e só então abro a porta. Até a festa do largo do Belém os menores invadiram. Já teve inclusive tiroteio na igreja.
Maria Luíza Borgonovo,
dona-de-casa
Tenho arame farpado e vidro moído no muro do quintal. O menino pulou o muro e se machucou muito. Estava todo cheio de sangue atrás de uma cortina. Vi a cortina se mexer e pensei: "Tem coisa aí." Aí o moleque pôs a cabeça para fora e pediu: "Tia, não chama a polícia." Corri e fechei a porta. Chamei a polícia, claro. Eurides de Sousa Carreira, dona-de-casa
Moro no primeiro andar. Quando ouvi a gritaria, eles já tinham entrado no prédio. Vieram pela escada. Eles entraram no apartamento, que estava com a porta aberta. Corri então para a sacada. O cachorro ficou louco porque tinha dois outros monstros embaixo da sacada, tentando subir. Enquanto isso, já tinha um forçando a porta da cozinha por fora. Tranquei as crianças no quarto com o cachorro e a empregada trouxe a vassoura. Quando um deles disse que ia entrar no quarto, dei uma vassourada nele. A vizinha do andar de cima começou a gritar. Ameaçava se jogar, porque o que tinha tentado entrar na minha porta de serviço agora tentava entrar no apartamento dela.
Margareth Bueno, promoter Na quinta passada, eu estava em casa, quando o namorado da minha filha ligou apavorado dizendo que tentou chegar de carro na minha casa, quando uns menores começaram a gritar: "Pára aí." Quando percebeu o que era, acelerou o carro, jogou em cima de um deles, atropelando-o. Adauto Cesar de Castro Filho, empresário
Os meus filhos, uma menina de 14 e um menino de 11, vinham e voltavam a pé da escola. Eles estudam no [colégio] Plínio Barreto. Como eu trabalho, eles iam e voltavam sozinhos. Na quinta, passaram dois menores e gritaram para ela que ela era boa para ser estuprada no chão. Agora eu paro na hora do almoço para levar os dois para a escola e para ir buscá-los às 17h30. A minha filha está com síndrome de porta fechada. Ela tranca tudo. Soraia Afonso, vendedora
Três menores invadiram minha casa na quinta. Tomaram o pessoal lá de casa como refém, já tinham pego algum dinheiro, comida e estavam saindo fora. Na saída, um dos menores parou, voltou e pediu o celular. Bom, ele está a fim de roubar o celular, foi o que pensei. Ele pegou o aparelho, ligou para a mãe e disse: "Mãe, eu fugi, eu tô indo para casa, tá tudo bem comigo". Eu estava assustada de ser assaltada, de ser colocada de refém, mas aí eu vi o menino falando com a mãe. Eu não queria que o menino fosse preso pela polícia, mas pouco depois a PM chegou e prendeu os três. Agora, eu sempre quero saber se o menino está bem, se a mãe dele foi visitá-lo. Todo dia, eu vou para a porta da Febem em busca de notícias do menino. S., dona-de-casa que não quis se identificar


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